segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A ESTAÇÃO DO ENTRONCAMENTO

Era no verão, por altura dos Santos Populares. Seria bom que o povo tomasse contacto com a arte. E vai daí, fizeram uma exposição ao ar livre, num recinto convidativo, com árvores, com canteiros, num jardim. A um canto, arte abstracta, noutro canto, afastado, arte figurativa. E aconteceu, com frequência, o que era de esperar. Olhem para aquilo. Isto também eu pintava. Borradas, é o que tal coisa é. O meu filho, que anda na escola primária, podia ter aqui os seus desenhos. São muito melhores do que todos estes. Não têm jeito para fazer quadros que a gente entenda, depois, é o que se vê. Tanto tempo, tanta tinta, para sairem coisas destas. Olha a estação do Entroncamento. Era uma tela de grandes dimensões. Até parece que estamos lá. O homem sabe disto. E empurravam-se, todos queriam ficar bem ao pé, para não perderem nada. Sim senhor, isto é que arte. Pensam que a gente não consegue distinguir, mas estão muito enganados. Vejam lá como está tudo no seu lugar. O homem sabe do ofício. As plataformas, os comboios, os passageiros, os vendedores de pevides e de tremoços. E as cores?, cores de um rico dia de sol. Este comprava eu,se tivesse dinheiro. Ficava bem lá na sala. Agora, os outros, lá de trás, nem dados. Que diriam os parentes e os amigos se os vissem lá na sala? Que estávamos malucos de todo.

COMO AS ANEDOTAS

Com a vertigem, o frenesim, a desatenção que vão por aí, há quem pense, talvez mal,  que  os escritos têm de ser como as anedotas. Têm de ser curtos. Já viram o que seria se elas fossem longas? Quase ninguém  lhes acharia graça, de nervosismo, de cansaço, por tanta espera. Oh homem, ou mulher, despacha-te, que tenho mais que fazer.

domingo, 24 de novembro de 2013

UMA AJUDINHA

Era uma terra nem pequena, nem grande, uma terra asim assim, que  ficava lá para o cabo do mundo, mas com comboio à porta. Nessa terra, havia três pessoas importantes, o comerciante João, o médico e o engenheiro. O senhor João ia, uma vez por outra, à capital, para se actualizar. Aquilo era um contar de novidades de estarrecer, no café central, à noite, depois dos trabalhos. Certa vez, o senhor João contou também uma aventura. Oh senhor João, se a sua mulher calha a saber, coitada dela? Não tem dúvida. Ela sabe muito bem que é só dela que eu gosto, ela está sempre em primeiro lugar. O médico não tinha mãos a medir, mas não na sua profissão. Como a gente lá da terra raramente estava doente e ele não era de se encostar às paredes, arranjara outros interesses. Ele era agente disto e daquilo, ele era agricultor, ele era, acima de tudo, mecânico de viaturas. A terra era ponto obrigatório de passagem de tractores e de camionetas, que, frequentemente, tinham as suas mazelas, a necessitar de tratamento. E o médico intervinha, a dar uma ajudinha. Chegava a estender-se no chão, a examinar eixos e cambotas, ficando numa lástima. O engenheiro era o responsável de uma grande obra. Por tal motivo e por estar muito interessado em encarecer o seu complexo trabalho, era ele que pontificava. A grande obra iria custar metade do que estava previsto. É que ele sabia poupar. Hoje meti nos cofres da empresa um dinheirão, era a sua expressão favorita. Quem eram os ouvintes para daquilo duvidar? Mas parecia haver ali economias a mais, alguém teria feito mal as contas.

MUITAS MANIAS

No reino da bicharada, apareceu por lá, um dia, um cágado cego e mudo. Durante muito tempo, tiveram pena dele, desfazendo-se em repetidos cuidados e atenções. Mas, a certa altura, já muito próximo da partida para o outro mundo, tudo mudou, o que não era de esperar. É que, repentinamente, deu-lhe para exibir muitas manias. Se fosse apenas uma, vá que não vá, ainda se tolerava. Quem as não tem? Mas assim tantas, era de perder a paciência e disposição para o aturar. Mas havia uma que dava vontade de rir e era o que muitos faziam, por não resistirem à cena. Então, não é que se julgava o maior saltador do reino? E isso,porque, certa vez, depois de muito tentar, conseguira saltar um milímetro. Sou o maior, sou o maior, não se cansava ele de atroar os ares. Passou a ser, pois, motivo de grande chacota. Ele não dava conta, coitado. E assim permaneceu, até que se foi desta para melhor.

sábado, 23 de novembro de 2013

GENTE FIXE

É pintor de interiores o senhor Francisco. Anda nisto há um ror de anos, tantos que até já lhe perdeu o conto. Deita mãos aos pincéis logo de manhazinha, só os largando pela noite dentro. Aos domingos, faz uma pausa, mas mais porque é um pau mandado e o sócio tem outras exigências. O corpo é franzino, mas rijo. Diz que esteve apenas uma vez doente, com uma forte gripe. Mas só faltou um dia à chamada. Podia lá estar sem as suas tintas. Tinto é também o seu líquido preferido. Às vezes, exagera, sobretudo em dias de folga. Tem um grupo de gente fixe com quem se diverte à grande. Volta não volta, dão grandes passeatas. Até já foram à Galiza. É que a vida não é só trabalhar. Com este modo de vida, o que mais se poderia esperar do senhor Francisco? A bebida será para ele um refúgio e até um resguardo para as correntes de ar que tem de apanhar, com as janelas sempre todas abertas. Não sabe fazer mais nada. Nem a bola o atrai, pois não sabe ler lá muito bem. Pouco informado, como é que acompanharia as conversas? Os companheiros do grupinho fixe serão também dos seus, pelo que ficará tudo em família.

A BONDADE

Chovia uma chuva miudinha e o chaparro vinha mesmo a calhar. E assim, três almas que andavam por ali vieram pedir-lhe protecção. Está-se aqui bem. Eu que o diga, que me tem servido muita vez. E a conversa veio. Então, pastor, qual é o seu ganho? Cinco escudos e de comer, não contando com o polvilhal. Vê aquele monte, lá ao longe, aquele com uma grande barra azul? Ali a soldada é maior. Aquilo é que é um patrão bom. Dá seis escudos, de comer e mais o resto, como eu disse. A bondade traduzida em dez tostões. Outros tempos.

DE CIGARRO NA MÃO DIREITA

O que se estava vendo era isto,  mas já se vira isto muitas mais vezes. A idade rondará os setenta. O corpo é esguio, alto. As costas são direitas, que nem tábuas. A cabeça é pequena, como a de um passarinho. O cabelo é grisalho, levemente ondulado. O andar é lesto, ainda que tropeçado, talvez por assim ter saído. E ali ia ela, como sempre, de cigarro na mão direita. Dava um passo, aparentemente inseguro, e levava o cigarro à boca. Dava um passo, recolhia a mão com o cigarro. Dava um passo, expelia o fumo. Dava um passo, levava o cigarro à boca. Isto, como uma máquina. As costas,sempre direitas,olhando em frente,imperturbável.

PARECIA VOAR

Toda a gente sabe, ou devia saber, que se não deve mandriar, que se deve fazer pela vida, que a vida está lá à espera, muito nervosa, para ser vivida. E era o que aquela senhora estaria fazendo. Já não era nova, longe disso. Teria aí uns cinquenta ou sessenta anos, que isto de idades tem muito que se lhe diga. Toda ela se vestia de negro, de negro mais negro, da cabeça aos pés. Não se sabe o que ela teria vendido. Apenas se ouviu o que ela disse a alguém que lhe teria ficado com uma parte da sua mercadoria, o resto da qual, que ainda era muito, estava envolvido num pano, também negro,  de negro mais negro, a servir de saco. Eu nunca mais esquecerei a senhora dona Maria e a dona Maria também não se irá esquecer de mim nunca mais. Pouco mais tempo ela ali se demorou, pois tinha lá, à sua espera, outras donas, Marias ou não. A pressa que ela levava, rua fora, ligeiramente a subir, merecia ter ficado registada. Parecia voar.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

BAGAÇOS E PASSAS

Os cimos onde ele se demorou, só vistos. Foi mesmo façanha de estarrecer. Muito podem, pois, enganar os começos. Numa manhã de bater o queixo, quando ele andava muito cá por baixo, comendo pão que o diabo amassou, desabafara, a modos que desconfiando das suas capacidades. Não sei como me tenho aguentado. Metia um grande dó olhar para ele, um corpo amarfanhado, quase transparente. Meio curvado, cara lívida, olhos encovados, era uma personificação da derrota. Estou aqui, já ia alta a manhã, apenas com um bagaço e uma passa. Coisas só para dar um calorzinho aos ossos. Muitos outros dias não teriam arrancado melhor. A escalada foi meteórica. A apoiá-lo, não lhe faltaram dons, deve afirmar-se, em abono da verdade, dons excelentíssemos. Mas sem aqueles muitos bagaços e muitas passas não teria, com toda a certeza, chegado tão alto e lá permanecido..

QUEM VÊ CARAS...

Era um homem de meia idade. A sua cara não inspirava simpatia. Teria contribuído para isso uma ou outra palavra grosseira que se lhe ouvira. Naquela altura, esperava um transporte. Tinha junto de si uma cadeira de rodas, onde se sentava uma mulher sem uma das pernas. Quando o eléctrico chegou os seus potentes braços facilmente deram conta do recado, içando cadeira e ocupante. Feito isto, sem ligar aos protestos de alguém que se estava sentindo muito incomodado com tal vizinhança, tratou de sentar a companheira num dos bancos. Imperturbável, veio desmanchar, com presteza, a cadeira, ficando na plataforma até vagar o lugar ao lado da mulher. E então, aconteceu o inesperado. Aquela cara, que parecia trancada, abriu-se em largos , meigos sorrisos. Aqueles olhos, que pareciam turvos, ficaram límpidos, brilhantes. A ternura dele comovia. É bem certo que quem vê caras não vê corações.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

CUIDADOS DA MAMÂ

Já não se estava em guerra, o que tinha sido um alívio, daqueles dos muito grandes. Ela findara, é certo, mas sentiam-se ainda sequelas suas. Entrara-se no seu rescaldo, que atingiu ainda muitos. Aquela mesa era uma prova evidente de que a carestia não se fora de todo, pelo menos nalguns cantos. Rondava por ali, com pezinhos de lã, com ares de se querer perpetuar. E ora veja-se se não era verdade. Pontificavam no cardápio três requintadas iguarias, quer dizer, alface, feijão dito colonial e manteiga de banha de porco. Ganharia um prémio o fotógrafo que tivesse registado,  para a posteridade, a cara do anfitrião, deleitado com a excelência dos acepipes. Todo ele eram sorrisos de triunfo, quando, ele próprio, se encarregava do serviço, enchendo os pratos. Parecia estar a fornecer ambrósia. Para muitos, noutras mesas, seria, mesmo, ambrósia. Mas para aqueles moços, acabados de sair dos cuidados da mamã, aquilo não era mais do que ração de encarcerados. Estranharam muito, de inicio, é um facto, mas bem depressa se tiveram de resignar. Contribuíram para isso, um cágado que lhes ensinou a terem paciência, e um papagaio que não se cansava de lhes desejar bom apetite.

A PRIMEIRA CASA

Um verdadeiro palácio, a bem dizer, sobranceiro a rua nobre. Nada lhe faltava, nem mesmo o princezinho. A entrada era um luxo, como não podia deixar de ser. Portão largo, pátio amplo,
empedrado, cavalariça, recanto ajardinado, de vistosos jarros, escadaria de dois lanços, varandim. Depois, era um nunca mais acabar de quartos, alguns para visitas, como lhe competia, cozinha de convento, onde pontificava a Joana, salão nobre, para os repastos ,e, sobretudo, um grande quintal, para os folguedos. Neste, presidia uma alta nespereira. Tinha cisterna, outra fonte de inquietações para a senhora, que o princezinho podia lá cair. A um lado, rasgava-se varanda a condizer, debruçada sobre outro palácio, onde reinava uma princesinha , sempre triste, porque a mãe não se dava ao respeito.
Depois, ainda, seguiu-se o desterro, e lá se foi o palácio. Não ficaram na rua, que uma segunda casa, para lá do grande rio, estava livre para os receber.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

UNS COBRES

Muito mudada está ela,ali sentada.  Ela, que não descansava um dia sequer,que o seu negócio não deixava. Vendia flores, á porta de padaria de bairro. Para as ter, tinha de se levantar bem cedo, que a fonte delas estava longe.
Mas os anos não perdoam, como é costume dizer. E ali se encontra ela sentada, como já se referiu. Não tem ela´flores para vender, nem outra mercadoria que as substitua. Espera que os donos dos carros estacionados num recinto que ela guarda por duas ou três horas, estejam dispostos a aliviar-se de alguns cobres.

DOIS CAUDAIS

Aquelas casas não deviam estar ali. Mesmo às suas portas passavam dois caudais - um, de carros, e o outro, de águas. Naquele dia, o rio quase transbordava, mas em toda a roda do ano o seu  nível seria sempre alto.
Crianças brincavam, aparentemente descuidadas, nos arremedos de passeios. O cenário arrepiaria qualquer um que não fosse dali. Tudo aquilo tinha, porém, o ar de ter sido assim já há um ror de anos.
Quem se teria lembrado de construir tais moradias e como se permitira uma coisa destas? É mesmo vontade de arranjar sarilhos. Quantos desastres teriam ocorrido e quantas vezes aquelas casas teriam ficado de molho?
Só a muita necessidade levara aquela gente a sujeitar-se a tais condições. Estaria perto o local do seu ganha-pão e os rendimentos não seriam por aí além. Em quantos não nascera o desejo de se mudarem?  Mas como?

DIA DO BOMBEIRO

Já ontem.pela tarde,fora dado aviso. Instalação sonora ao longo da avenida lançava aos quatro ventos música apropriada. De vez em quando, intercalavam-se vozes que indicavam ser de ensaio. Iria haver festa rija. E hoje, ainda a manhã mal despertara, repetiram a dose.
Aí pelas onze, ouviram-se sons de muitas cornetas, de toada já conhecida. Eram os bombeiros. Era o seu dia. Marchavam garbosos, em grande número. Só que desta vez, São Pedro pregou-lhes grossa partida. Chovia que Deus a mandava. Mas eles teimaram, como em tantas ocasiões. Completaram o circuito programado, ainda que todos ficassem num charco. Elas então metiam dó.
Em local adequado levantara-se vistoso palanque. Foi aí que se alojaram as forças vivas, devidamente resguardadas, não fosse o céu fazer das suas, como se referiu. Convinha que não debandassem, se não estragar-se-ia a cerimónia, que incluía aparatosas continências à direita. Lá se ouviram as vozes de comando e os gestos correspondentes.
Apesar de tudo, deviam ter ficado todos satisfeitos. No final, para compensar, esperá-los-ia fraterno convívio em redor de mesa farta. Mereciam, sobretudo os soldados da paz.