quarta-feira, 31 de maio de 2017

O HOMEM DA ATALAIA

Guardara-se aquele local para o fim . É que constava que aquilo era domínio de animais mal feridos. E agora ali estavam,que o trabalho tinha de se completar. A vegetação era alta e densa,um enfeltrado de capim e de espinhosas. Por isso,um escadote fazia parte do instrumental. A picada estava a ser aberta,com a orientação do homem da atalaia. A certa altura,entram em cena as avezinhas anunciadoras da presença de pacaça. Pipilam muito,lá no alto,por cima do hospedeiro. Como de outras vezes,procura-se,fazendo mais barulho,espantar o bichinho. E o que é que o vigilante vê ou julga ver,que tudo se passava lá no interior do mar verde? O bichinho parecia não se ter acobardado e decidira dar luta,vindo ter com o inimigo. Não pensou duas vezes o homem da atalaia. Saltou dela e desatou a correr pela picada fora,uma picada muito estreita,trazendo atrás de si toda a companhia. Sabia lá ele onde punha as mãos? Os espinhos estavam lá, à espera ,e uma mão foi picada. Ainda almoçou,mas jantar é que não. Febre alta,o corpo todo dorido,incapaz de se alimentar. Valeu-lhe alguém,que,por quase uma semana, lhe levava a comida à boca,e um enfermeiro que percebia de infeções. Ainda convalescente,com um braço ao peito,teve de regressar,de jipe,primeiro,por estradas inundadas,depois,de comboio miniatura e de comboio a sério,e,finalmente,de avião. Parecia ter vindo de uma guerra.

CELULOSE QUASE PURA

Parecia aquilo uma fortaleza. E,como mandam as boas regras,lá estava a defesa apropriada Não só uma linha,mas duas,que o inimigo era de duas qualidades. Uma,exterior,à base de covas fundas,com cobertura frouxa,espinhosa,para os predadores,a outra,uma faixa larga,permanentemente capinada,para os fogos. A primeira linha era posta à prova com muita frequência. De vez em quando,lá funcionava como se queria,retendo algum intruso,como uma pacaça ou um javali.De outras vezes,era uma grande tristeza. Acontecia isso quando se tratava de elefantes,que se riam daquela proteção.Os destroços que semeavam à sua passagem,só visto. É que eles sabiam escolher,interessando-se apenas pelos tecidos mais tenros. Deixavam como recordação abundantes dejetos,que se resumiam a celulose quase pura. Eram muito aproveitadinhos. A segunda linha,pode dizer-se,não passava de um adorno. As quieimadas sucediam-se,é certo,mas ali havia muito pouco por onde pegar,pois o verde era avassalador. Os dois rios que corriam por lá encarregavam-se dessa pujança,alimentando-a sem cessar,sem parcimónias.

VOZES E RISADAS

Tinham nascido ali. Por ali tinham andado,primeiro,às costas das mães,depois,com as da sua idade,em grupos,nas brincadeiras de sempre. Ele não as via,mas sabia que andavam por lá,escondidas pelo capim alto,detrás das árvores,no meio dos esparsos milharais. Acompanhavam-no,nas deambulações com o Armando,primo de todas elas,incapazes ou interditas de se mostrarem. O mata-bicho vinha ter com ele,que o trabalho obrigava a madrugar. O Armando encarregava-se das sobras,numa ação de partilha. Ouvia-lhes as vozes e as risadas,e chegava-lhe o aroma de maçarocas assadas. A tarefa recomeçava,de uma cova para outra. Que andaria aquele a fazer? Para que diabo seria aquilo? Coisa esquisita. O homem devia ser bruxo. Como tal,só longe dele. Era capaz de as encantar,como fizera com o primo,que não queria outra companhia. Ter-lhe-iam recomendado,certamente,que tivessem muito cuidado com ele.

FORÇAS DA NATUREZA

Uma princesa,lá,há muitos anos,uma rainha,cá,ainda há pouco,duas dignas representantes das suas estirpes. Lá,colhia dendém,espalhado no chão. Que serenidade,que distinção. Serviam-na um rancho de crianças muito alegres. Eram as suas aias. Um rio de águas verdes e mansas corria a seus pés. Cá,ela não trazia séquito. Mas em qualquer momento,em qualquer lugar,teria sempre quem a servisse solicitamente. Bastaria um aceno,bastaria que isso quisesse. Tudo ali emudeceu. Foi uma adoração. Imperturbável,certa da sua realeza,olhava em redor, de modo ausente. Era uma suficiência,uma magestade. Do seu trono,um vulgar assento,a um nível comum,dominava tudo e todos,naturalmente,sem um assomo de altivez. Levantou-se,quando lhe aprouve,saiu serenemente,magestosamente,deixando atrás de si um silêncio respeitador,reverente. Duas forças da natureza. Altas,direitas,robustas,como colunas de palácio rico.

COMEÇO TARDIO

Não podia perder aquela oportunidade única,tanto mais que estava a despedir-se desta vida de imprevistos, que ele bem conhecia e bem experimentara. Era,de facto,largo e rico o panorama que se lhe deparara. Não se tratava do "tanto mar",mas ,sim, da tanta caça e do tanto peixe. Eram coisas a que nunca ligara,talvez por natureza,mas seriam,naquela altura,um bom passatempo,quando outros rareavam. E não devia desperdiçar mais tempo. Muniu-se,então,não de uma peça para cada modalidade,mas de duas baterias,uma,de espingardas,e a outra,de canas,ali bem à sua frente,sempre prontas para usar. Era,porém,a melhor ocasião de tiro o que mais o preocupava. E lá pensou ter resolvido o intrincado problema,montando um foco de luz dirigido à cara do condutor. E quando achava o momento oportuno,accionava-o. Não consta ter ocorrido desastre de maior,pois o timoneiro era de primeira escolha. Não consta,também,que,alguma vez,o tiro atingisse o alvo ou o anzol enganasse o peixe. Tinha sido,efectivamente,um começo tardio. Mas estes desaires teimosos pouco o incomodavam. Aquilo não fora mais do que uma maneira hábil de se entreter.

QUE QUERIA AQUELA GENTE ?

Estaria preocupado aquele povo. Não era para menos. Que queria aquela gente estranha que ultimamente dera em andar pelas suas terras? Gente que andara a visitá-la,gente que assinalara locais onde outra gente abrira covas fundas,gente que viera enfiar-se nelas,fazendo lá não se sabia o quê. O que viam é que eles lá se demoravam. Um dia,tinham de lhes perguntar. E esse dia chegara. Talvez aquele que estava ali sozinho dentro de uma cova os esclarecesse,os tranquilizasse. Vieram em grupo numeroso,solenemente,com o chefe,um velho que parecia muito velho,de cabelo muito branco,a comandá-los. Que queria aquela gente? Saiu da cova e foi ao seu encontro.Uns escassos metros os separavam. Teve tempo de pensar numa resposta que os havia de tranquilizar. Fiquem sabendo que um dia serão informados do que devem fazer para terem mais milho. Teriam entendido e ficado satisfeitos,pois mal o da cova acabou de falar,deram meia volta e foram lá para a sua vida.

POBRE JIBÓIA

O jipe não havia meio de vir,pelo que o melhor era fazerem-se ao caminho,um caminho à beira-rio. Manda quem pode,mas às vezes não devia mandar,como foi neste caso. Ignorâncias. Entretanto,caíra a noite. Dava aviso,mas esperava pouco. Já se sabia,mas era o mesmo que nada. À frente,ia o trepeiro,homem muito experimentado. Com ele no comando,ia-se tranquilo. Não se contara,porém,com uma jibóia,que se lembrara,naquela altura,de ir à sua vida. E deu-se o que é frequente acontecer,um encontro que ninguém desejava. A pobre da jibóia deve ter ficado muito assustada e tratou de se escapulir,refugiando-se no remanso de onde viera,o capim fresquinho do talude do rio. O guia ainda levantou a catana no propósito de a enfrentar. Fora ele o único a montar defesa,pois com os outros não se podia contar. Ora a nossa vida,lamentava-se o que podia. Assim não vamos lá. Com quantas gibóias iremos cruzar? Está além uma fogueira e o mais acertado é ficarmos lá à espera,aconselhou o guia. O jipe acabou por aparecer,depois de se ter refeito de uma mazela.

AMIZADE DE UM DIA

Devia ser coisa muito urgente,a atinar no que se estava vendo. Um carro estava parado,em plena avenida,em plena hora de começo de trabalho. Aquilo era um businar de ensurdecer. Lá dentro do carro,um jovem,que não havia meio de parar a conversa com o seu velho amigo, por quem ele tinha de velar,pois queria que ele chegasse aos cem ou mais,o que ele estava disposto a assegurar,pela sua muita experiência no prolongar de vidas. Era uma amizade de um dia,nem tanto,mas a amizade não tem idade. Tinham-se conhecido numa  casa atafulhada de gente,que era dia de feira. Venha para aqui,que a gente encolhe-se,onde cabe um,cabem dez,pois então. E ali ficaram à conversa,que ele tinha mezinhas para todas as mazelas,de que o seu novo amigo estava cheio. Eles que esperem. Enquanto eu não acabar de dar novas indicações aqui a este meu muito amigo,não os deixo andar,tenham paciência,aprendam comigo a lição,que primeiro está a amizade,estas coisas assim.

PRECIOSIDADE

Ele gostava muito do seu copito,e queria-o ter quando lhe aprouvesse. Para isso,trazia sempre com ele,na sua volumosa pasta,de companhia com livros,pois era uma pessoa muito letrada,uma garrafinha com o vinho da sua preferência. Um dia,descuidou-se,e a pasta foi bater em sítio duro,quebrando-se a garrafinha. À vista de tal desgraça,da pasta a sangrar,que a preciosidade era do tinto,não se conteve,e desabafou,muito pesaroso. Lá se foi o meu rico lambedor.

MUITO AGRADECIDOS

Ora,para que é que havia de se estar a ralar? Se não fosse ele a aproveitar,não demoraria logo outro a fazê-lo,que aquilo estava mesmo a pedi-las. A ignorância que ia por lá era muita,do que ele não tinha culpa. Quer dizer, aquela era mesm uma vinha à espera que a vindimassem,pois era uma pena que a uva se estivesse a estragar. Coitados,para ali abandonados,como que entregues a si mesmos,sem saberem ler e escrever,e com meia dúzia de litros de vinho ainda por vender. Então,aparecia ele. Reunia todos aqueles quase nadas e fazia figura de grande produtor. O pago não era por aí além,que ele também tinha as suas despesas. E os coitados ficavam-lhe ainda muito agradecidos,pois doutra maneira tinham de dar o vinho ou deitá-lo fora.

RICO VINHO

Eram dois homens altos,a tirar para o seco,aí de uns quarenta anos,de cabelo muito louro. Tinham vindo lá de terras da velha Albion. Estavam naquela altura,já lá vão uns bons anos, bem no interior alentejano. Trouxera-os o serem eles técnicos especializados em certo tipo de maquinaria,que uma nova fábrica iria utilizar. Por lá andavam,desde manhã cedo,que o tempo,muito quente,assim aconselhava,regressando a casa,a pensão lá da vila,pela tardinha. Nunca se lhes vira comer do que quer que fosse,mas de beber é que sim. A sorte que eles tiveram,ali instalados em pleno centro de uma região produtora de um rico vinho. Lá para os seus botões devem ter dito o mesmo. Que sorte tivémos nós. Pena era não ficarem ali para sempre,mas não podia ser. Nunca teriam sonhado com um paraíso daqueles. Seriam capazes de lá ter voltado,em tempo de férias,para matar sede e saudades. Como era de esperar,a bebida estava primeiro,mas também em segundo e em terceiro. Deve dizer-se,porém,em abono da verdade,que nunca foram vistos fazendo disparates. Teriam vindo já bem preparados,já que os líquidos da sua aprendizagem tinham muito mais graduação.

UM CIGARRINHO

Ia haver festejo. Um,trazia uma garrafa de vinho tinto,ainda por encetar,e duas latas de cerveja vazias. O outro,com uma respeitável barba branca,estava na expetativa,como que sendo o festejado. Das latas,com golpes de navalha,o da garrafa fez dois copos. A rolha teve de tomar um banho. Quando a garrafa ia a meio,chegou a vez dum cigarrinho,que não era mais do que uma beata. Estava a vida difícil,pelo que se tinha de aproveitar o que outros já não queriam. É a vida.

O FESTEJADO

A azáfama que tinha havido por ali para se encherem depósitos,tonéis,vasilhas. Ainda não era o vinho,mas,com o tempo,lá chegaria. A vindima chegara ao fim. Nos ares pairavam restos de aromas que se tinham escapado dos lagares. Era o vinho que os sustentava,era o vinho a sua riqueza,merecia,por isso,que o festejassem. E ali estavam eles e elas a recriar os passos essenciais. Foi um cortejo de horas,pois muitas tinham gasto para dar esses passos. Lá se explicava a poda,a cava,os outros amanhos culturais. Lá se mostravam os cestos repletos de novidade,as dornas,os lagares,as prensas,o laboratório. Lá desfilaram os braços necessários. Os gestos indispensáveis todos os puderam ver. Os cantares é que mal se ouviram,que os tratores assim quiseram. Não faltaram as crianças,a apontar a continuidade da acção criadora. A hora era de regozijo universal,pelo que os atores tiveram casa cheia. E o vinho,o festejado,só recolheu,quando se viu sozinho.

UM REMEDEIO

Pedir, custa,oh se custa. Que o diga quem alguma vez pediu. E custará mais,muito mais,quando da primeira vez. Depois,repetindo-se as vezes de pedir,custará cada vez menos. Uma pessoa habitua-se a tudo,mesmo a maus tratos,chegando,até,sublimando-os,a orgulhar-se deles. Vem isto a propósito do que se passou algures,há muito,muito tempo. Coitados deles,deixavam arrastar os dias de espera,talvez à espera de um milagre,mas,a certa altura,não podiam deixar que um dia mais passasse. Tinha de ser,não havia mais nada a fazer. Sabe,a mesada está atrasada,não há meio de vir,e eu não posso esperar mais,que o prazo esgota-se. É só para um remedeio. Quando chegar,esteja certo,venho a correr saldar a dívida. É só para um remedeio. O que lhes deviam custar aqueles passos,que nalguns se repetiam. O que lhes deviam custar,ali a mostrar as suas fraquezas, a sua dependência. Era só para um remedeio.

ABALO FORTE

Era bom,mas acabou-se. Demoliram há dias a sua querida barraca,a última de um punhado delas. Fora a sua casa durante muitos anos,mas,sobretudo,a sua base de trabalho,o seu armazém. Far-lhe-ia um grande jeito,mesmo ali a dois passos do cruzamento onde fazia pela vida,vendendo flores.Teria metido empenhos para lá permanecer. O abalo foi manifestamente forte,quase vital. Não parece a mesma. Ali deve haver outra coisa,uma coisa muito séria. Emagreceu,empalideceu,amoleceu. Ela já não é nova,longe disso,mas mostrava energias que causavam admiração. Aquilo não deve ser só um caso de mudança de lar,aliás,para muito,muito melhor,pois teve direito a uma morada decente. Vêm-na rondar o local do seu antigo palácio,repetidamente cruzá-lo,pisá-lo,demorando-se. Sentirá falta dos cheiros,dos sons. Sentirá falta das tábuas,das chapas,das pedras,do chão,da fossa. É capaz de sentir falta de outros inquilinos,que já fariam parte da família.

DÍVIDA

O favor,a ajuda,tinha sido grande,podia dizer-se,mesmo,vital. Seria,portanto,de elevadíssimo preço,a pedir um reconhecimento para sempre. Isso significaria,igualmente,uma,também,grande dívida,de um tamanho tal que seria quase impossível resgatar. Coisa tremenda era,pois,o que estava vivendo quem fora objeto de tudo isso. Ficar sempre em dívida era como ter continuamente sobre ele os olhos do outro,a lembrá-lo,a exigir-lhe não se sabia o quê,talvez sujeição,talvez o pagamento da conta. Tal situação dir-se-ia insustentável,exigindo uma saída airosa,para se poder viver de cabeça levantada,não como até ali,um inferno. Uma delas,era ir para longe do credor,assim como riscá-lo da vida. A outra,era desvalorizar a benesse,reduzindo-a a nada. Aquilo,nem um pobre aceitaria,uma miséria sem nome. Não se sabia era como tinha sido aceite,só explicável por ter sido apanhado num estado de muita fraqueza.

RENÚNCIAS

Coitado,do moço,não o deixavam ir ao cinema. Em primeiro lugar,estava o estudo. Pois é,mas, às vezes,quando o apelo era grande,não resistia,pisando o risco. Mas para que serve a cabecinha? Todos sabem que serve para muita coisa. Dizia-se nos velhos tempos que não era só para colocar o chapéu. Ele não tinha chapéu,mas queria,às vezes,quando o apelo era grande,ir ao cinema,sem lá em casa saberem. E era simples. Entrava em casa,mesmo ali ao lado,antes do fim,quando aquilo estava no melhor da festa,no ponto das grandes decisões. Entrava em casa antes de se ouvir a barulheira das carripanas,sinal de que a função tinha terminado. E está-se mesmo a ver,ou a ouvir,o que acontecia no dia seguinte. Coitados dos amigos que tinham cartão de livre trânsito. Eram massacrados tempos sem fim,até terem deitado tudo cá para fora. Compreende-se. Ele tinha de ver o filme todo. Moral da história. As renúncias podem começar muito cedo,numa altura em que ainda os tecidos estão tenros. Felizmente,neste caso,sem importância,porque não vital. Mas quantas renúncias,no dealbar da vida,ou não,por esse mundo além,mundo alheio,cheio de renúncias,que só os que passam por elas as podem classificar. Mas há umas em que todos estarão de acordo. Quando não há que comer.

UM BOM PEDÚNCULO

A pujança daquele tufo de folhas muito largas e de pedúnculos a condizer,mesmo ali à beira de água. A vida que elas levavam. Mas tudo tem um fim. E o fim chegou quando se lembraram de lhes arranjar um vizinho muito incerto,um repuxo disposto a fazer das suas. Tinha este vizinho um aliado de peso e que era a brisa,também muito incerta. Talvez fossem da mesma familia,quem sabe. O certo é que as folhas passaram a ter uma vida muito agitada. E era o que estava sucedendo naquela manhã,por via de uma brisa menos amena e vária. A folha mais castigada não se fartava de carpir. E com razão. O que valia era o pedúnculo,que aguentava,ainda que pouco firme. Bem se fartava a pobre folha de se lastimar. As outras ouviam-na,mas nada podiam fazer. Ela que tivesse paciência,que fora o que as animara quando lhes calhara a vez. É assim,a vida,destas e doutras folhas,e não só,um só muito composto. Paciência é que é preciso,que outro remédio não há,porque de agitações não se podem as folhas livrar,e não só,um só muito composto. É assim a vida. E quem puder aranjar um bom pedúnculo, melhor resistirá,como acontecia com aquelas folhas. Só um vendaval as quebraria.

COISAS DA VIDA

O que uma guerra pode engendrar. Certa terra,que,felizmente,dela se livrara,que estava mesmo longe dela,resolveu também participar,à sua maneira,à sua escala. Aquilo não passou,a bem dizer,de umas brincadeiras,mas,mesmo assim,obrigou ao fabrico de dois partidos. Podiam ter nascido mais,que sensibilidades várias não faltavam,mas dois chegavam,tanto mais que na guerra a sério eram dois os contendores. As operações bélicas limitaram-se a duas modalidades. Numa,visaram-se montras,na outra,esmurraram-se caras. Nunca se soube bem porque viera logo para a primeira linha uma das montras. Parecia ter havido ali um grave problema de cofres vazios. Teria sido,assim,uma desesperada tentativa de equilibrar as finanças. Enfim,coisas da vida,que a uns corre tudo sempre muito bem,enquanto a outros é o que se sabe. Volta não volta,lá apareciam os vidros quebrados em ambas as frentes. A reparação não demorava,uma questão de honra. Mas não dava para descansar,que o inimigo estava sempre de serviço. Era vital não ceder. Sinal de fraqueza,de derrota,nunca nestas duas frentes. Quanto às caras,houve um caso que deu brado. De uma banda,a cara era a de um gigante,da outra,a de um pigmeu. Foi o grandalhão o derrotado,tal como veio a asuceder ao contendor que ele representava.

AJUDA VITAL

No entardecer da vida,dera-lhe para se recordar,a cada passo,de alguém que muito o ajudara e que já partira para não mais voltar. Fora uma ajuda vital,a exigir um teimoso agradecimento. E naquele entardecer,sentia que não lhe agradecera bastante. Ele não esperaria agradecimentos,pois era daqueles que dão de graça porque de graça receberam. Parecia-lhe,porém,estar em grande falta. E queria,naquela ponta final,não saldar a dívida,que a considerava enorme,para além das suas fracas capacidades,mas,ao menos,reduzi-la,ainda que num valor modesto. Não era para ali um ingrato,um esquecido da mão que o amparara. E aquela repetida lembrança,ao mesmo tempo dolorosa e doce,seria uma forma,tosca forma,de mostrar o quanto lhe estava agradecido.

NECESSIDADE VITAL

O rapazinho corria,corria,atrás do automóvel. Lá dentro,os dois irmãozitos com os pais adoptivos. A distância era cada vez maior. Lá viu que não conseguia apanhá-lo. Parou. E ali ficou,muito direito,numa grande triteza. Uma estátua de desalento. O pai morrera e a mãe abandonara-os. Com esta separação,sentir-se-ia,irremediavelmente,só. Assim,se consideraria,mesmo quando lhe arranjaram,também,uma família.Parecia nada lhe faltar,mas um irreprimível desassossego o atormentava. Só tranquilizaria quando se desse o reencontro com os irmãos. De nada valeram,nem o aconchego do lar que o recebera,nem o ter constituído família. Esse reeencontro tão desejado transformarara-se numa necessidade vital. Parecia isto trazer uma mensagem. O amplexo que acabou por selar o reencontro dos três irmãos poderia ser a imagem de um abraço universal,apaziguador e salvador. Para ele ter lugar seria

O TAL ABRAÇO

Há que tempos viviam de costas voltadas aqueles dois irmãos. E um deles adoecera gravemente,estando por um fio. Era altura,pois, do outro o ir visitar para o abraço da paz. Centenas de quilómetros os separavam. Estava demasiado velho,mas ainda assim com algumas forças,embora fracas. Mas a vontade remove montanhas. Assim ela exista,e ele estava cheio dela. Guardara lá para um canto um pequeno trator,quase tão velho como ele. Não o deitara fora,porque lhe tinha muita amizade. Ajudara-o muito,sempre fielmente,quando ambos eram novos. Ficara para ali,como,alás,outras coisas,de que não se quisera desfazer. Manias de velho. Seria premeditação? Uma peça daqui,outra dali,mais um certo jeito para reparar velharias,para não entrar em despesas,e deu-se o milagre. O trator parecia ter ressuscitado. Para a estrada,que não havia tempo a perder,pois o irmão estava para lá,muito doente. Fez as suas despedidas,talvez as últimas. Felizmente que grande parte do caminho era quase plano,o que facilitou a vida ao trator. Como era de imaginar,a viagem teve as suas complicações,mas com a ajuda deste e daquele,que a solidariedade não é uma palavra vã,lá foi engulindo milhas sem conta.

O MILAGRE

Coitada da senhora,fora ludibriada. Recebera uma pequena fortuna,mas ela necessitava de uma maior. É que a permanência no lar em que se encontrava,ou em qualquer outro,não estava segura. Só tendo muito dinheiro,e aquele ainda não chegava. Mas era simples,dissera-lhe alguém. Aquela quantia a render alto juro faria o milagre. Bastava seguir os seus conselhos. Ficasse descansada. Esse alguém era simpática,dava mostras de ser muito sua amiga,e ela acreditou. Passou-lhe toda a sua riqueza. Em troca,ficou com um documento,muito bem redigido,com todos os pormenores em casos destes. E esse alguém sumira-se,sem deixar rasto. A cara da senhora era um misto de tristeza e de comprometimento. Ela sabia que o rendimento prometido era exagerado.Fora,afinal,vítima de si mesmo. Mas que outra saída teria ela? É que talvez a esperasse um fim muito triste.

MOÍDO DA VIDA

Não era a Luísa que tinha de subir a calçada,de António Gedeão. Era um operário que tinha de ir trabalhar lá para o fim do mundo,e,depois,regressar a casa,vindo do cabo do mundo. Regressar a casa é como quem diz,porque não passava ela de um acanhado quarto,onde dormia também o bébé. O que é que lhe havia de apetecer,após um dia de grandes canseiras? Repousar,certamente,mas,sobretudo,dormir,num sono interminável. Era bom de apetecer,era,só que o seu bébé não lho permitia. A fome,as dores,ou sabe-se lá mais o quê,faziam com que ele estivesse a interromper,vezes sem conta, o sono do pai. E uma noite,talvez uma noite em que lhe apetecesse dormir tempos sem fim,uma noite em que mais moído da vida se sentisse,perdeu a cabeça. Levantou-se,pegou num ferro e calou o filho para sempre. Sabia lá ele o que fazia. Terminaram ali aquelas canseiras. Iria ter muito tempo para recuperar, lá na cela que lhe destinaram.

MUITOS PERIGOS

Pobres mães,sempre raladas com os seus filhinhos,mesmo quando eles cresceram muito,quando já são homens,ou mulheres. E como mudam os tempos,como mudam as vontades,que até parece não ter havido outros tempos. Estava ela,a pobre mãe,muito chorosa,à porta da escola,manhã muito cedo. Nem teria dormido, coitada dela. E quando entrava um,ou dois,os que calhassem,que era hora de começarem as aulas,ela perguntava,muito preocupada,se tinham visto o seu filho,o seu filho que não lhe tinha aparecido em casa,naquela noite,pela primeira vez. Nunca lhe tinha feito isso,e ele devia saber que ela estaria muito ralada. O que lhe teria sucedido,que havia por lá muitos perigos,o que lhe teria acontecido? Lá procuraram confortá-la o melhor que puderam. Não se rale,minha senhora,que ele deve ter ficado em casa dalgum colega,que há muito que estudar,pois estamos em época de exames,ele deve ter-lhe dito. Vá para casa,não se apoquente mais,que ele há-de lhe lá aparecer.

SESSÃO TERMINADA

A casa enchera-se,pudera não. É que ia falar o chefe,mais propriamente,o chefe dos chefes. Estavam os chefes,todos os chefes,como mandavam as boas regras,e alguns peões,os que acharam que não deviam faltar por causa das coisas,dessas coisas que estavam sempre a acontecer. O chefe dos chefes falou,lá dizendo de sua justiça,que era,aliás,muita,não fosse ele quem era,e depois, consentiu,dada a circunstância do momento,que outros dissessem também lá de sua justiça. Falaram alguns chefes,mas só alguns,senão nunca mais se saía dali. Os peões estavam retraídos,mas houve um que se atreveu. Queria ele saber,e fê-lo com a máxima compostura,mais pormenores disto e daquilo. Foi atendido,mas não ficou satisfeito,pelo que insistiu,também com a máxima compostura. O que é lá isso? Olhe,que abusos não admito. Mas... Não há mas,nem meio mas,cale-se,e já. Foi uma corrente de ar polar que passou por lá. Estava a sessão estragada. Estava a sessão terminada.

DE IGUAL PARA IGUAL

Muito passaria ele,muito magrinho,muito amarelinho,a barba por fazer,ali sentado,no poial de uma porta,horas e horas,frente a dois restautantes-bares,junto ao mercado. O movimento que ia por lá,sobretudo,nos bares,à sombra deles,e também onde ele se encontrava. Lá ia conversando com este e com aquele,mas,muitas vezes,ficava sozinho. E ele sem poder fazer como os outros,ainda que andar pudesse,mas mal,o que uma muleta, ao seu lado, bem indicava. Portanto,lá poder entrar,podia,uma ou outra vez,como os outros,quando a sede,ou a fome, apertassem,mas onde é que estaria o dinheiro para gastar em luxos,onde estaria? A vontade que se tinha de chegar ao pé dele e dar-lhe alguma coisa para ,também,ele ir lá dentro beber ou comer o que entendesse.Mas havia receio de o magoar mais,o que bem se compreende. Por enquanto,ainda ele comprimentava ,de igual para igual, quando junto dele se passava. Mas,depois,quando dinheiro aceitasse,ou não tivesse aceitado,o que iria dar na mesma? Ficaria o entendimento,irremediavelmente,estragado.

UM RESPEITÁVEL BANDO DE GALIN HAS

Logo o jipe havia de aparecer,quando elas se estavam a sentir tão bem ali naquela clareira. Era um respeitável bando de galinhas,barrando o caminho. Viram o jipe chegar,viram-no aproximar-se e nada de se moverem. O jipe avançava lentamente,à espera de elas se decidirem,acabando por tocar nalgumas. Só nessa altura é que reagiram. Levantaram-se,sem pressas,e como o jipe insistia,lá iniciaram o voo,mas tão lentamente,tão sem vontade,tão pesadamente,que quase se lhes tocava. Finalmente,lá guinaram para a mata,que no outro lado estava o rio,que não seria das suas simpatias.

À QUEIMA-ROUPA

O moço acabara o curso e contava que um emprego lhe caísse,muito depressa,do céu. O céu não demorou. Está interessado em substituir-me? Acabei de ser convidado para ir trabalhar na minha terra,coisa que há muito desejava. Estou aqui tão contente. Via-se à légua. Pois é para já. E lá foi o moço para o seu primeiro emprego. Também se sentia muito contente. Para começar,não estava mesmo nada mal. Até quarto tinha de graça,mesmo ali ao lado do serviço. Havia,apenas,um senão. Ficava como assalariado,quer dizer,a corda na garganta podia ver-se. O outro lá lhe ia passando a pasta,uma pasta de que ele estava a gostar muito. Uma tarde,num encontro,aconteceu coisa muito grave. Então não é que o lugar lá na tal terra tinha outro dono,um que acabara de ser apresentado? Ia partir já no dia seguinte. É assim a vida,cheia de surpresas. E esta podia ter sido fatal,porque à queima-roupa. E lá ficaram os dois quase a desempenhar a mesma tarefa. A situação não estava a agradar ao moço. Não é que o quisessem mandar embora,longe disso. Parecia-lhe só que dois eram demais. Entretanto,num concurso para outro lugar,este de quadro,ficara com ele à sua espera. Ainda tentou assegurar o primeiro,apsar da tal aparente duplicação. Mas foram inabaláveis. Ou assalariado,ou vá lá para onde quiser. Mas isto,com cara de poucos amigos. E assim se desfez o duo.

CONFEITARIA CENTENÁRIA

Confrangia o apelo da senhora,ali naquela sala de plateia a nível nacional. Parecia uma mendiga de mão estendida,solicitando uma ajudazinha. Tratava-se de uma confeitaria centenária,lá para o Norte,em riscos de ter de fechar as portas. As histórias que ela teria para contar,histórias que fariam parte de uma história maior,digna de ser guardada para que pudessem ficar a sabê-la os que viessem depois. Passara-se em tempos por lá. Apreciara-se,como não podia deixar de ser,as especialidades da casa. Mas apreciara-se,sobretudo,o envolvimento,o chamado ambiente,humano e mobiliário. Tudo aquilo respirava tempos românticos. A delicadeza do trato,do estilo de que o freguês é que tem sempre razão,não tinha par. Parecia ter-se mergulhado no tempo,de um tempo que morreu,acabou-se,já não há mais,agora só em sítios como aquele,que deviam ser agarrados,conservados,como jóias sem preço. Talvez,até, tivessem passado por ali o Camilo,o Nobre,o Pascoais e outros da mesma família. Pode ser que o seu apelo tenha sido escutado,quem sabe? Pena foi que a pobre senhora estivesse ali de mão estendida solicitando uma ajudazinha.

TEIMOSO ESFORÇO

Aqueles olhos pertenciam a um corpo prestes a despedir-se. Pareciam tranquilos. Trilhara muitos e variados caminhos e andara por paragens distantes. Estaria cansado e precisaria de repouso. Fora uma vida de altos e baixos. Dera a impressão,algumas vezes,de se ir afundar. É que não escolhia águas. Mas lá encontrava forças para o impedir. Nascera temerário. Optimista,contava vencer todas as dificuldades. Nem sempre o conseguia,mas não desanimava,encetando novo rumo,com redobrada determinação. Interessar-lhe-ia mais a aventura do que o sucesso. Encostado na almofada da cama,parecia sorrir. Teria passado em revista os passos da sua longa e trabalhosa vida e achado graça a alguns. Naqueles em que não fora feliz,culparia os fados e os homens. Muitas partidas lhe tinham,de facto,pregado. Chegara ao fim. Para trás,deixara um rasto fundo,de teimoso esforço,quase sem quebras. Dera razoavelmente conta do recado.

terça-feira, 30 de maio de 2017

PARA DAR E VENDER

Não era o ouvem-se tambores ao longe,mas sim rumores de estrondosa cachoeira. Era isto de esperar. É que em tempos de carestia,aquela nascente comportava-se como se a chuva andasse por toda a parte, a ensopar vales e encostas,e não andava,ainda que a pedissem,que a coisa estava a ficar feia. Pois naquela altura,era o que se estava vendo e ouvindo. E de tal maneira,que se não desviassem as águas para as profundezas,haveria ali uma inundação de todo o tamanho. De onde virá tanta água,admirava-se alguém que tal coisa nunca tinha visto? É que se estava ali num alto. Pois é,é que há altos ainda mais altos,e o sistema de vasos comunicantes é uma realidade. As hortas que por ali haveria nos belos tempos. Aquela era água para dar e vender. E não só hortas,jardins também,cheios de amenidades,de sombras,de frescura apetecida em tardes e noites de verão.

COISAS PARA VENDER

Por favor,onde é a praça? Era uma moça,aí de uns quinze anos,alta,magrinha,com carita de fome. Disseram-me que havia perto da praça uma casa que vende coisas em segunda mão. Sabe onde é? Olhe,é ali, logo a seguir ao prédio verde. Está a ver? Sim,obrigado. E lá foi,levando na mão um saquito de plástico com coisas para vender.

NA PRAÇA PÚBLICA

Em dias de procissão,elas também lá figuravam. Não se misturavam com a multidão,pois tinham um lugar reservado. Era a boca do túnel que dava acesso ao seu bairro,ao seu "ghetto". Ali ficavam em magote,que o espaço era acanhado. Não estavam lá como simples curiosas,antes intervinham activamente. Pode dizer-se,até,sem grandes exageros,que eram elas as mais participativas. Não quereriam significar outra coisa,certamente,o seu pranto,as suas súplicas,os seus veementes rogos de perdão,em tom alto,enchendo os ares,sobretudo,à passagem dos andores. O cortejo arrastava-se,mas o seu estar não mostrava quebras,antes pelo contrário. Era impressionante,era comovente,era trágico. Só elas,afinal,tinham coragem de expor, tão abertamente, o seu arrependimento,de cara bem descoberta,ali,à vista de todos,na praça pública.

NÃO PODEMOS CONTINUAR ASSIM

O marido fora despedido. Do que se podia ouvir,era uma situação que se vinha arrastando demasiadamente. E ela já não a suportaria. Nós não podemos continuar assim. E foi assim,que ela,aparentando andar à volta dos trinta anos,lhe estava lembrando,pelo telemóvel. Já lhe teria dito isto noutras ocasiões,a sós,na intimidade,mas naquela tivera larga assistência.Vários companheiros de viagem tiveram oportunidade de a ouvir,que o tom era alto. O desespero em que ela estaria. Foi capaz até de nem ter dado conta,coitada dela, do espetáculo que proporcionara.Vê lá,fala com o senhor mais uma vez,tem paciência. Enche-te de coragem,diz-lhe que és meu marido,ele conhece-me,pode ser que reconsidere. Mas tens de insistir. Olha que nós não podemos continuar assim. E repetia,repetia. Metia dó. Depreendia-se que ele não se estaria esforçando. Estaria a contar com ela. Contaria que ela tivesse paciência.

MAIS UM FOGO

Ah,já sei de quem se trata,é o senhor Rui. Foi para um lar,deixou de vir aqui,uma sopinha de pobres. Afinal,confirmava-se a suspeita. O senhor Rui tivera de deixar o teto,uma casa abandonada,entaipada, que o abrigara por uns meses. É que um fogo,mais um,tinha-lhe consumido o telhado,liquidando-a,parece que de vez. Quer dizer,era capaz de o senhor Rui estar agradecido ao fogo. Alguém se compadecera mais,desta vez,e dera-lhe um teto a valer. Os seus muitos anos também teriam ajudado.

UMA SUSPEITA

Os amigos são para as ocasiões e ele,um moço já conhecedor daqueles sítios,vinha mesmo a calhar. Ainda bem que me encontraste,pois sei de um quarto que acabou de vagar e que te vai servir muito bem. Foi ver,gostou e instalou-se nesse mesmo dia. O contrato incluía pequeno-almoço. Havia mais quartos alugados e logo na primeira manhã teve lugar reunião geral. Além dele,mais três airosas meninas,que fizeram questão de não faltarem,para conhecer o novo vizinho. Parecia serem estudantes,pois traziam pastas,numa das quais se via uma bata branca. Mas não eram. Ele percebeu o embuste,não era assim tão ingénuo,mas não se deu por achado,fazendo de conta. A dona da casa fora abandonada pelo marido,que lhe deixara uma filha.Para sobreviver,alugava quartos. Devia tê-lo informado,mas não tivera coragem. Sabe,a vida está difícil,temos de fechar os olhos a coisas de que não gostamos. Compreendia que se quisesse ir embora e agradecia por lhe ter pago o mês,o que lhe dava muito arranjo. Qual teria sido a intenção do amigo? Nunca se soube,mas ficou uma suspeita.

TENTAÇÕES

O comboio ouvia-se já. A coragem abrandara e a disposição não era a mesma de há momentos. Tinha apenas vinte anos. A aproximação do fim amedronta,talvez até o mais santo. Quando o encontro ia quase a dar-se,ainda fez uma tentativa desesperada para escapar. Não morreu,mas ficou sem um braço e sem uma perna,a lembrarem, para sempre, a intenção e o recuo. Que seria dela agora? Não passava de uma deficiente,de um tropeço. Quem a quereria? Na sua terra,vivia um jovem em crise. Ainda muito novo,adquirira posição de relevo em empresa prestigiada. O tentador a proveitou-se da situação,levando-o a abusar da confiança granjeada. Uma quantia avultada levou descaminho. Foi condenado e cumpriu a pena. A sua eficácia não fora esquecida,bem como a falta grave. Readmitiram-no noutro posto,afastado de tentações. Via-se que andava inquieto. Não lhe bastava o perdão. Queria reconquistar a confiança antiga,que ele desbaratara em má hora. Sentia uma incontida necessidade de cometer um feito que removesse, de vez, a mancha que persistia,restituindo-lhe a imagem passada. Procurou e julgou ter descobert,o. Casou-se com a infeliz arrependida.

ADEUS,ATÉ MAIS VER

A camioneta estava parada e dois homens encarregavam-se de a carregar com folhas de palmeiras,empilhadas no passeio. Um deles,aí de uns ciquenta anos,encorpado,de muito boas cores,parecia ser ali o chefe. Pode-se fazer uma pergunta? Venha ela,mas sem que tal fosse ouvido. Qual é o destino dessas folhas? Iam levá-las para um local,onde seriam cortadas em pedacinhos,para entrar lá no fabrico de composto. O senhor não é de cá,pois não,quis saber o da pergunta? Não,vim de longe,e concretizou. A coisa parecia ter ficado por ali,depois do da pergunta lhe ter tocado familiarmente no forte ombro,assim como a dar-lhe coragem,mas não. Ia o da pergunta lá no seu caminho,ao longo do passeio,quando sente a camioneta afrouxar,e lá de dentro sair um adeus,até mais ver.

FERRATO

Estivera para ler,pois eram ainda os primeiros passos,mas lá se enchera de coragem e enfrentara o "inimigo" com um improviso muito trabalhado,muito decorado. A certa altura,ia ele já em jeito de cruzeiro,mas não seguro,saiu-lhe da boca o termo ferrato. O que ele foi dizer. Ferrato? Assim como a inquirir que bicho era aquele. Era para se ter desorientado,que quem usara da palavra era para brincadeiras. Mas não. Ferrato sim,um familiar dos permanganatos e outros que tais,brincando também. Deve saber.

UTOPIA

Não faças isso,não dês esse passo,não vás por aí,que te irás arrepender. Mas ele estava determinado. Que lhe importava o que dissessem,o que fizessem,que o seu sonho se desvanecesse? Já não era uma criança,sabia muito bem o que queria. E o que é que ele queria? Talvez o impossível. Precisamente,uma coisa sem importância,a atentar nas reacções dos cantos mais diversos. Tratava-se,apenas,de alterar o rumo a uma pessoa. Tratava-se,apenas,de estender a mão a alguém que se metera por maus caminhos,onde já muito se manchara. E ele estava decidido a recuperá-la. Não seria isso de louvar? Mas ninguém assim o entendia. Pois é assim que vai ser. Ela agarrou a mão que se lhe estendia,porventura como uma náufrega,com ambas as suas mãos,com todas as suas forças. Ia ser uma senhora,que ele era um senhor,não um dos muitos que a tinham usado,e,depois,descartado. Já teria perdido,até, as esperanças de alguma vez o ser,ou,talvez,nunca nisso tivesse pensado. Deve ter agradecido e jurado que não mais trilharia os tais caminhos maus. Juras. Teria sido tarde demais,que ela já não era uma criança. Aquilo era vara retorcida desde muito cedo. Ganhara hábitos,que,como alguns dizem,são uma segunda natureza. Restara,apenas,o bom propósito dele,o que muito significava. É a utopia que faz a diferença.

MAUS EXEMPLOS

Que mal lhes teriam feito as pobres árvores? E logo aquelas. Já contavam largos anos,é certo, mas estavam ali ainda prontas para muitos mais,assim deixasse quem mandava nelas. E o bem que elas tinham feito? Davam ricas sombras,sem rivais à vista,sendo o regalo de muita gente,velhos e novos,quando por ali o calor era de rachar em dias de verão. E,depois,naqueles velhos tempos românticos,as noites,no aconchego da sua presença tutelar,eram ainda mais românticas. Para além disso,que já era muito,sem preço mesmo,era morada rica de um incontável número de famílias de pássaros. Ali,porém,não havia respeito ,apontavam alguns,com ar carrancudo,o que era muito feio. Davam essas árvores muito maus exemplos. Já viram isto?,o que vai por aqui,está cada uma para seu lado,sem regra,sem disciplina,às vezes,em magotes,enfim,uma desordem intolerável. Isto, só de gente desordenada. Pois tem de se pôr aqui ordem,e sem tardar. E certa manhã,uma manhã triste,um exército de serras,daquelas bem afiadas,entrou a decepar. Não ficou uma para amostra,a lembrar um passado perdido. Tal mortandade era de bradar aos céus,que não intervieram,que os céus tinham mais que fazer. Estavam bem arranjados os céus se tivessem de atender a todas as desgraças. Aquilo foi um choro interminável. Choraram as pobres árvores,enquanto puderam,choraram também as suas almas. Choraram pássaros e passarinhos. Choraram alguns desses velhos tempos românticos. Mas ninguém acudiu,pois tinham mais que fazer,tinham as suas vidas trabalhosas. Ora, árvores há muitas,é o que não falta. Depois,elas crescem,assim não lhes rareie o sustento,não lhes falte o sol,e também a água,que o CO2,um tijolo fundamental,talvez do que mais precisam,há para aí às carradas,já nem sabem mesmo o que se lhe há-de fazer.

TUDO PERDIDO

O encontro a dois começou a ser como era norma,um encontro formal,mas acabou na maior das informalidades,cada um a dizer de sua justiça. Um deles,o mais velho,andaria aí pelos sessenta ou setenta, e o outro,talvez uns quarenta,não mais. Era a primeira vez que se viam. A certa altura,quando já se estava em plena informalidade,desataram a falar de tudo e de mais alguma coisa. Falaram da vida,dos seus escolhos,falaram dos filhos,que o mais novo tinha,falaram do seu futuro,como se costuma dizer,como se fossem donos dele. Pois é,o diabo da vida não há meio de encarreirar,disse o mais velho. É sempre a mesma luta,e cada vez mais feroz. É o salve-se quem puder,doa a quem doer. Não há volta a dar-lhe. Saem-se melhor os que dispuserem de melhores armas,sobretudo,de melhores apoios,melhores padrinhos,como é corrente dizer-se. É a vida. O mais novo não esperava nada ouvir o que estava ouvindo,vindo de quem era. Foi uma surpresa,e das grandes,uma surpresa reveladora. Aquilo devia estar mesmo muito mal. É que o senhor tinha muita experiência da vida,não por ele,mas por aqueles com quem ele convivia,e ele lá saberia que era mesmo assim. E assim,seria caso para dizer que estava tudo perdido. Estaria para muitos,porventura uma grande maioria,lá pensaria o mais novo. Como é que ele iria proceder para que os filhos não se perdessem? Não iria fazer nada em especial,nem mais nem menos do que tinha feito até àquela altura. Deixaria correr as coisas como até ali,que elas seguissem o seu curso e fosse o que Deus quisesse. De resto,em boa verdade, não podia fazer mais nada,mais exatamente,não sabia fazer mais nada.

CESTO DOS PAPÉIS

Era uma senhora já reformada. Uma senhora que ainda tinha muito para dar. E deu,fora do seu país,passando um mês ali,outro mês acolá,por via das suas muitas amizades. Num deles, teve uma grande surpresa. Olha o que eu estou a ler? Era a capa de um trabalho sobre uma matéria da sua especialidade. Ora vamos cá ver se esta gente sabe do que eu fiz. E qual não teria sido o seu espanto,ou outra coisa qualquer,que nem a mais leve referência lá vinha sobre o que ela tinha feito. E teria ficado triste,e teria atirado o trabalho para o cesto dos papéis. Este atirar foi o que foi espalhado aos quatro ventos. Estava lá e vi,eu seja ceguinho. E não se cansava ele de o repetir. Afinal,o trabalho não valia nada. A mim cá me parecia. E fora preciso essa senhora vir lá de fora para dizer que o rei ia nu. O calor que punha na denúncia era tal que alguém pensou que não fora a senhora que atirara,mas sim ele mesmo. E está-se mesmo a ver porquê.

MAIS QUE FAZER

O rei não ia nu,antes pelo contrário,mas ia só. Parecia isso uma grande ousadia,pois era sabido que muitos perigos o espreitavam. E a rua que ele descia estaria cheia deles. Tratava-se,de facto,de uma vereda muito apertada,quase imitando um desfiladeiro,de passeios miniaturais.Não admiraria,assim,que os serviços competentes ,muito previamente,tudo tivessem feito para garantir a segurança de sua majestade. A rua estaria vigiadíssima,só que não se notava à vista desarmada. Foi o que constatou um velho,que,por um muito mero acaso,se viu a caminhar atrás do rei. Olha,mas é o rei,e não leva séquito. Donde virá ele e para onde irá?Rapidamente ficou tudo esclarecido. É que,atentando melhor,deu conta de grande festa ali mesmo a dois passos. Estar-se-ia fazendo tarde e outra festa o esperaria,que os reis precisam de se distrair.Talvez sem dizer água-vai,o que não seria de estranhar,ele ali ia muito serenamente,sem olhar para trás,nem para os lados,que ele saberia estar bem guardado,para a sua carruagem,estacionada uns cem metros abaixo,numa meia-laranja,muito conveniente em garganta como aquela.Porque o velho aparentava não fazer mal a uma mosca,não fora incomodado na sua digressão ocasional. O mesmo aconteceu a um casalinho, entretido nos seus amores. Nem deram conta do velho,nem do rei. Tinham mais que fazer.

DIA MUITO DIFERENTE

O que pode fazer um quase nada. Trazia a senhora,já com muitas primaveras,as mãos muito ocupadas. Fora abastecer-se e estava esperando a sua vez,na bicha da caixa. Faça favor de passar à frente. Os artigos eram modestos,como modesto era o seu ar,modesto e preocupado. A gentileza tocara-a,a ponto de lhe modificar o ar. A sua cara desanuviou-se. Não esperaria isto de um desconhecido. Tivera uma atenção com ela,gesto a que não estaria habituada. E sentiu necessidade de retribuir,agradecendo mais de uma vez . Não era caso para tanto,mas, lá no seu entendimento,tinha esse estatuto. Não seria exagero pensar que aquele dia teria sido para ela um dia muito diferente,um dia,talvez,de festa. Era ,também, como se o tivesse ganho,ainda que muitos achassem desprezível o pago. Também não seria exagero pensar que durante algum tempo,porventura dias,aquele inesperado gesto lhe fosse tornar a vida mais leve. É que alguém,um desconhecido,desinteressadamente,se tinha preocupado com ela.

MAIS UM IMPOSTO

Uma onda de revolta lambia,no seu vaivém,o pacato bairro. É que a autoridade decidira instalar parquímetros. Andavam os ânimos exaltados,prontos a irem às do cabo. Uma comissão solicitara várias reuniões,para acautelar os justos e sagrados interesses dos residentes. Iriam ponderar,foi-lhes prometido sempre. Mas duvidavam e isso trazia toda a gente intranquila. Mais um imposto,não. Numa tentativa desesperada,inundam de listas com assinaturas,devidamente reconhecidas,a secretária de quem de direito. Um forasteiro quis saber do motivo de tanta preocupação. É que ficara muito assustado com o ar de guerra que ia por ali. Aquilo podia degenerar numa revolução. Alguém,que não vivia nada mal,de cabeça perdida,esclareceu-o. Querem obrigar os residentes a pagarem quinze euros. Por mês? Não,por ano. E olhou para o forasteiro com ar desconfiado. Já viu maior desaforo? Uma quantia destas. Os tempos iam difíceis e a autoridade cedeu. Ficou por metade. A paz regressou

ESTÍMULO DA NATUREZA

Ainda não era bem a Primavera,mas sim uma sua boa imitação dela,assim como uma espécie de arauto a anunciá-la,que ela estaria prestes. O que tinha acontecido naqueles últimos dias era bem uma amostra do que estaria para vir,muito à semelhança do que sucedera no passado,sem uma interrupção,como alguém se tivesse comprometido a uma tarefa,e que era,nem mais,nem menos,um autêntico festival da Natureza,incansavelmente a renovar-se,como programado. A paisagem,aqui e ali,já dava um ar da sua nova graça. E eram as amendoeiras e outras prunóideas em plena floração,pintando-se de branco ou róseo,e eram as acácias a desdobrar já o seu amarelo. E eram as rolas que já se estavam a fazer ouvir,depois de sacudirem a frialdade que as tolhera. E eram as meninas a começar a aligeirarem-se e eram os meninos que as não deixavam sossegadas. Ainda bem que a nova primavera estava para vir,a primavera das promessas a cumprir. Talvez nessa onda de novidade,de algum modo já conhecida,viesse forte inspiração a certas cabeças,que estariam também à espera desse estímulo da natureza para darem fruto que merecesse a pena.

O AR OS TRAZIA

Os frutos de muitas árvores da densa alameda atapetavam intempestivamente o chão. Grave doença passara por ali. Como se isso não bastasse,a sombra gélida de uma imponente mole senhorial dominava,esmagava,toda a quadra. Um tanto mais além,por um estranho vale,circulava grossa frialdade. Era de fugir dali,que os males pegavam-se. Os anos foram passando,mas os ecos daquelas tristes lembranças é que não passaram,perduraram. Pairavam no ar,ou o ar os trazia,teimosamente. Eram como poeiras maléficas,que, longe de se biodegradarem,se insinuam nos buracos mais escondidos ou nas alturas mais distantes, permanecendo tempos sem fim. Eram,também,como residuos tóxicos condenados a perpetuarem-se.

FRIALDADE

Lá fora,estavam graus negativos,ai uns sete ou oito,e o quarto era uma água-furtada. Queria isto dizer que lá dentro seria um frigorífico se não houvesse lareira. Não havia. Em seu lugar,havia um calorífero,que funcionava com introdução de moedas. Não seria,portanto,um frigorífico se moedas não faltassem. Não faltavam,só que o sono dava em aparecer,e quem pagava era a cabeça que ficava de fora. Um turbante ou um barrete pouco adiantavam,pelo que,sempre que se acordava,lá se tinha de recorrer à pilha de moedas,ali mesmo ao lado. Era só deitar mão a uma e enfiá-la na ranhura. Também se dispunha de botija,para os pezinhos. Mas não era de fiar,pois,de vez em quando,lá derramava o conteúdo. Mas a frialade não se ficava por aqui. Saindo da toca,lá o esperava o gelado do chão da rua. Nunca se estatelou,vá-se lá saber porquê. Talvez aqui funcionasse um certo jeito para escapar às ratoeiras ou então, outra coisa qualquer. Tudo,afinal,vai do treino.

RISO DIABÓLICO

Um horror,o que podia ter acontecido. Fora aquele um caso para não mais esquecer. Quem é que iria esquecer uma coisa daquelas,sim,quem? O caso conta-se depressa. Andavam os ânimos muito esquentados,pois não era coisa para menos. Estavam a ser meses e meses de nada se fazer de jeito,e a boa vida é má conselheira,toda a gente sabe disso. Pode levar a vícios,pode levar a ações que não lembrariam ao diabo mais diabo. E foi o que se passou naquela manhã do diabo,ou lá de quem era. Se ele não se tivesse desviado,num ato de mágico,seria homem morto. Uma mão lançara com ganas uma pedra,daquelas com muitas arestas bem afiadas,a um alvo que era uma cabeça,ali a uns escassos dois,três metros. A frialdade que passou por lá,de arripiar o mais encalorado,uma frialdade de morte. Pois quem fizera tal lançamento pareceu ter ficado muito triste por não ter acertado,dando-lhe para rir,talvez para compensar,num riso diabólico.

UTILIDADE DO LUGAR

Iam de mãos dadas ,ele e ela,como,alás,é frequente vê-los. Assim passaram uma porta larga. As caras sorriam. Estava ali um casal feliz. A vida corria-lhes como eles desejavam. Ainda há pouco,uma meia dúzia de palmos de terra se convertera num pesado saco de notas,efeito da utilidade do lugar. Servira isso para elevar o monte que já existia. À entrada,depararam com duas sentinelas,que ali têm permanecido tempos sem fim,pois nem pensar serem rendidas. Ora ali se encontravam dois ,que a seu modo,os têm sabido imitar. É que o chão onde se sentam,embora de pedra dura,lá se vai transformando em moedas. Pena é que não seja em notas,mas cada qual é para o que nasce.

TUDO EM MOEDAS

Eram três mulheres,com cara de serem da mesma família. Uma,cega, muito cega,aí de uns cinquenta anos,vestida de escuro pesado,baixa,para o encorpado,desenvolta,outra,de aparência mais nova,mas não muito,toda louçã, de amarelo vivo,baixa também,roliça,a terceira,uma jovem ainda,alta,atlética, voz forte,de amarelo mais vivo. A cega trazia a caixinha do seu muito peregrinar. Tinham vindo à farmácia aviar uma receita. Eram alguns remédios,que a cega padecia de vários males,como se ficou a saber. Quem pagou foi a moça,tudo em moedas.

OS INADAPTADOS

Olha,aqui também há pobres. Coitado dele,ali sentado no chão da rua,a arranhar um violino,com um boné bem aberto,ali ao lado,para as moedas,que lá iam caindo,talvez num ritmo de que não estava gostando. E aquele, a empurrar um carrinho de mão,meio desconjuntado,a abarrotar de trastes velhos? Coitado dele,também,que devia lá estar ainda em casa,que a neve estava caindo. Parece impossível. Mas isto não são vidros,nas janelas. Isto são cartões,e já a romperem-se. Coitados deles,o frio que lá deve fazer dentro. Pois é,dizes bem. O pior é o resto. E ali,naquela esquina,estão a ver? Uma menina,coitadinha,aí de uns dez anos,se tanto,mal vestidinha,a vender flores,ela que também era uma flor,de bonita que era,apsar de tudo. Todos eles tinham um nome que os envolvia a todos. Eram os inadaptados,um lindo nome.

VIDEIRAS ESFOMEADAS

Tudo quanto vive precisa de comer,como bem se sabe. Neste tudo estão as plantas, como também é assaz conhecido. A videira é uma planta,não podendo fugir,pois, a essa coisa vital,que é o comer. Ora o comer não é acção simples,é mesmo muito complexa,escusado será dizer. Para o que agora interessa,põe-se a variedade. E aqui, entra o azoto,o fósforo,o potássio,o cálcio,o magnésio,e mais uns tantos. E nestes tantos está o manganésio,de que certas videiras estavam carentes,ainda que não se soubesse. Pois foi desta carência que tratou um estágio. Mas para se chegar às doentes teve muito que se lhe diga. Para já, ficavam longe e só um ilustre professor sabia onde. Ele gostaria de lá ir indicar,mas não tinha transporte. Felizmente que houve alguém que cooperou,pondo um carro logo à disposição. E lá foi o ilustre professor levar o moço ao local do "crime". Lá chegados,nunca mais o moço esqueceu as suas palavras. Agora,é consigo. Felizmente que apareceram mais ajudas. É que estavam em causa videiras esfomeadas. E perante isto,não houve porta a que ele batesse,de mão estendida,que dissesse não. O resto foi simples. Foi colher terra,foi colher folhas,e analisar. E viu-se logo o que ali estava a faltar. Era mesmo fome de manganésio,claro como água límpida,até uma criança via ao olhar para certas chapas impressionadas. Chapas de que um outro ilustre senhor dispunha,sabendo trabalhar com elas,ensinando.

MÉTODO CANHESTRO

Certa carreira profissional levou,um dia,uma grande volta. Quase que lhes tinha saído a sorte grande. Um apreciável grupo passou a formar um pelotão compacto,todos com a mesma antiguidade,mas fora do quadro. Ascenderiam a ele,à medida que se dessem vagas,de aordo com as diferenças de tempo que,entretanto,se verificassem,resultado de faltas por doença. Os mais saudáveis beneficiariam. Enfim,um critério,à falta de outro melhor. Aconteceu que chegara a vez a um deles. Mas o chefe não estava para aí virado. Aquela vaga destinava-a ele a outro,que se atrasara por doença. E o que estava para entrar ficou a marcar passo. Podia ser que ele caísse à cama por alguns dias,os suficientes para ser ultrapassado. Felizmente que se veio a dar uma outra grande volta,que cabou com aquele tão canhestro método de arrumação.

ERA ...

Era um sintoma de nostalgia dum futuro,de coisa desconhecida,que não havia meio de vir. Era um cansaço da rotina costumeira,do novo sempre velho. Era um desconforto pelo que tardava em aparecer à luz do dia. Era um entardecer sem esperança. Era uma tristeza por ter de partir de mãos vazias. Era o ter andado muito,sem ter saído do mesmo canto. Era uma espera defraudada,sabendo-se que tinha de ser assim. Era o ser rua,e ser,afinal,o mundo. Era como se o fim não precisasse do princípio. Era o crescer para ficar velho. Era o ter ficado melhor em casa,sentadinho no sofá. Era o novo feito máscara,para esconder o velho. Era o velho que não havia meio de dar lugar ao novo. Era a alegria da esperança,já com laivos de tristeza. Era...

TRAPO VELHO

O que havia de ter acontecido à mulher. De repente,sem aviso prévio,tem de se socorrer do primeiro WC que lhe apereça,não importa onde. Mas as pessoas habituam-se a tudo,até a maus tratos. O marido acabou também por se conformar. Uma manhã,calhou ser um daqueles que funcionam com a introdução de uma moeda. Era numa alameda,nas vizinhanças de um casino. Pena era que não dispusesse de uma janela panorâmica. Ela entrou e o marido ficou de sentinela. Um velhote,apoiado em grossa bengala,abeirou-se,curioso de saber pormenores sobre aquele novo mobilário urbano. Supunha que não custasse tanto dinheiro. Então,tem lá dentro alguèm? Sim,é a minha mulher. Coitada,de vez em quando,é isto,não pode esperar. Tem com que se entreter para o resto da vida. Mas podia ter sido pior. Eu que o diga,quase lacrimejou. Você tem sorte,pois ela está ainda viva. Agora eu,ando para aqui sozinho,que a minha já lá vai. Muita falta me faz,pois estou para aqui feito num trapo velho. E lá foi,caminhando com muita dificulade ao longo do passeio.

PARA A RIBALTA

O que as senhas fizeram. Lá se foram aqueles "lindos" espetáculos,de longa tradição e à borla,que se montavam,aqui e ali,onde se compravam coisas. Uma boa parte dos artistas não esperavam pela sua vez,nem cuidavam de saber quem tinha chegado primeiro. Queriam ser logo atendidos,pois estavam com muita pressa. Ao consagrado quem está primeiro?,ouviam-se vários eus. E a discussão instalava-se. Alguns dos que se adiantavam teriam uma comprida história de estar sempre lá atrás,em casa,com os "amigos",no emprego,no conseguir. E aproveitavam aquelas ricas ocasiões para se afirmarem,para virem para a ribalta. Era humano,compreendia-se. Conviria,até,que tudo continuasse como antes,pois encontravam ali uma fonte de compensações,uma forma de contrariar estados depressivos. Ali podiam desabafar,pôrem-se em bicos dos pés,levantar cabeça,coisas que noutros lugares seriam difíceis,mesmo perigosas. Alguns serviam-se daqueles locais para experimentar as suas estratégias de penetração. Primeiro,está aquele senhor,depois,cabe-me a mim. Ganhavam,pelo menos,um aliado. Julgam que me enganam,mas tirem daí o sentido. A senhora foi a última a chegar e já quer ser servida? Quem pensa o senhor que é? Lá por estar mais bem vestido,não tem o direito de me ultrapassar. Depois,quando levavam a sua avante,exploravam a vitória. Demoravam. Ponha mais um. Troque-me por outro mais bem cozido,que a minha filha só gosta deles a estalar. Agora,ponha mais aquele,aí à direita,que é para a minha mãe,coitada,que já não tem dentes. Quando alguém dava a sua vez,ficava muito admirado. Não queria acreditar,julgando ter ouvido mal,mas acabava por aceitar,talvez pensando que o desgraçado não devia estar bom da cabeça,ou então desfazia-se em agradecimentos,como se o gesto fosse de alta valia. Enfim,cenas do quotidiano,fruto de inúmeras diferenças,que permaneceráo, porque reais. São o reflexo da riqueza infinita de personalidades. Cada um é uma pessoa única. Nunca dois ou mais num só. E se vier a acontecer,será mais um mistério ou um milagre.

VIDAS

Parecia aquilo um velório. Eram oito à mesa,uma mesa que deveria ser farta. Pelo menos,era de apetecer o que estava exposto,e que eles,pedindo-lhes,serviriam. Ali,á mesa,não se ouvia uma palavra. Talvez estivessem cansados,e mais cansaço os esperasse. Talvez estivessem fartos uns dos outros. Talvez estivessem com saudades das suas famílias,das suas terras,que alguns tinham vindo lá de muito longe. Mas vontade de falar é que lhes não faltava,pois foi ver quem mais falava com um estranho que lhes aparecera,e que por eles se interessara,embora dele não lhes viesse uma maneira de se libertarem daquela sujeição,que era estarem ali horas e horas a atender este e aquele. Vidas.

GLÓRIA

Que tempos aqueles. Havendo fortuna e filhos,a fortuna ficava para o que tinha primeiro visto a luz do dia,ou da noite,tanto faz. Os outros que se fizessem à vida,que havia por lá muito para colher,assim se soubesse,se queriam ter vida melhor da que os esperava,vivendo às sopas do primogénito,que não seriam,aliás, nada para enjeitar. E assim, lá partiam alguns à cata da tal vida melhor,com coisa que se visse,que valesse a pena. De boa cepa,donairosos,bem depressa se arranjavam. A normal via para isso era o manejo das armas,pois naqueles tempos,muito ao contrário dos que vieram depois,havia desentendimentos por tudo e por nada. E assim,para que fortuna se não dividisse,fortuna se tinha de arranjar,desse por onde desse,ainda que para isso se tivesse de arriscar a vida,cobrindo-se de glória.

ENTREVISTA

O velho ia a caminho de uma entrevista. Em casa,preparara-se devidamente para não fazer má figura diante do senhor e no trajeto foi recapitulando aquilo que lhe havia de dizer. Estava uma tarde muito quente. E,quando a ocasião chegou,foi um desatre dos grandes. Irra,que está de abrasar. Quase como numa passagem inesquecível,dum não menos inesquecível escrito,de um nunca esquecido escritor. Mas rapidamente recuperou,de modo a compor o ramalhete,que tão mal começara a formar-se. É que se vinha desentranhando em historietas,nos últimos tempos,empurrado não sabia ele porque forças,e estava a ver que o veio não havia meio de secar. Era capaz de vir a entrar,assim,na eternidade. E voltou a reincidir,prestes a imitar um outro célebre cultor das letras. Lá achara que no paraíso seria,no seu rasteirinho caso,demais. Também a escrever,era,da sua humilde parte,um grande exagero. Quando muito,a descrever,assim,à maneira das redações,lá na escola,para o professor ver. É que não esquecera o reparo que uma outra estrela de muito brilho tinha feito diante de uns neófitos. Descrever é fácil,escrever é que é difícil. O senhor ia ouvindo com bonomia. Mas que pretenderá este velho? Não lhe bastara gastar máquina e papel,para agora estar ali a palmar-lhe uns preciosos minutos do seu riquinho tempo. Mas tinha de o aturar,que remédio,pois com os velhos tem de se ter muita paciência. E poucos a têm,infelizmente. Esquecem-se de que, um dia,também serão velhos,e,nessa altura, acontecer-lhe-á o mesmo,o quererem ter ouvidos a ouvi-los,mas ouvidos atentos,não ouvidos distraídos. Deixou-o,pois,falar à vontade,sem o interromper,assim como numa confissão,a despejar o saco. Podia ser que ele se cansasse depressa. E foi que sucedeu. O velho até se esqueceu da sua pretensão. Aquilo não tinha,afinal,passado de uma manifestação da necessidade de comunicar que o atormentava.

A MODOS QUE MORTAL

Apetecia chamar-lhe nomes,nomes feios. Ali submetidos,atentos e obrigados,suspensos daquelas follhinhas,como estava escrito algures,daquelas folhinhas volantes. Mas seria isso uma injustiça das grandes,uma injustiça sem nome,de bradar mesmo aos céus,pois a culpa,se a havia,não era deles, certamente. E logo eles,coitados,que mal ganhavam para as magras sopas,quando trabalhavam,e mal continuavam a ganhar,quando se dava o render do posto do fazer pela vida. Talvez lhes tivessem dito que ali e acolá o podiam fazer de graça,escusavam de os ir comprar. Nalguns desses sítios havia ainda livros e outras amenidades mais,pelo que passariam lá uns momentos bem passados. Livros? O que era isso? Sim, tinham ouvido falar,mas isso era para doutores. E passavam de largo. Mas voltando às folhinhas. O que é que lhes adiantava lê-las? A eles,nada,porque na mesma ficavam ou pior. Mas adiantava,sim,a outrem. Parecia tudo isto um plano bem urdido,um plano inconfessável. E saberiam eles,coitados,a distância que separava as suas pobres rendas das dos que eles idolatravam,desses,e não só? Sabendo e não reagindo,era isso sinal evidente de que o plano era um muito bem concebido. Seria a mente a visada,um golpe a modos que mortal.

ANJO DA GUARDA

Estava irreconhecível a pobre senhora. Ela, que era,melhor dito,que fora o anjo da guarda de seu filho,um homem aí com quarenta e mais anos,que dela inteiramente dependera. Acabara de sair de casa. Apoiava-se a uma bengala e a cara era de grande sofrimento. Ele acompanhava-a. E parecia ele,naquela altura,o anjo da guarda dela. Estaria ela,porém,bem arranjada se outro anjo da guarda não consguisse. Que iria ser dos dois,com ela assim? Talvez,quem sabe,ele se recompusesse de todo. As aflições que o assaltaram,privado,naquela altura,do arrimo que nunca lhe faltara,talvez operassem o milagre. Passaria ele a ser o anjo da guarda da mãe,que se veria incapaz de tratar dele e dela. Que quadro aquele. A pobre senhora,arrastando-se a muito custo,e ele,ali ao lado,com um ar que,em boa verdade,não se podia dizer qual fosse.

ERA O QUE FALTAVA

Tinha graça,tinha,se ele não pudesse andar como ele bem entendia,pentear-se como ele mais gostava,vestir-se como ele queria,adornar-se como lhe vinha à cabeça,fazer o que lhe dava mais gosto. Pedira dinheiro a alguém para assim proceder? Não,podia prová-lo . Então,metessem-se lá com a sua vida que ele tinha a dele,niguém tinha nada com isso,era o que faltava. Têm carro? Pois também eu tenho,e de uma boa marca,como podiam ver,se estivessem interessados. Dão esmolas aos pobrezinhos? Também eu dou,se calhar muito maiores do que a de muitos ,que dáo só umas moedinhas,quando podiam dar uma coisa que se visse. Estão casados? Também eu estou,e gosto muito da minha mulher,e da minha filha,que está ali quase uma mulher. Ora metam-se lá com a sua vida,que eu tenho a minha,ninguém tem nada com issso,que eu não me meto com a dos outros,que,não sei porquê,quando me vêem,parece que viram um fantasma,pela cara que põem. Já uma pessoa não pode andar com quer? Era o que faltava.

EXPEDIENTE HONESTO

Mas era o moço que trabalhava ao lado dele,um bacharel em bioquímica,que ia ali,naquela rua,manhã cedo,a empurrar um carrinho com garrafas de leite e a pô-las às portas das casas. Que vergonha,se a mãezinha dele aquilo visse. Ai o meu rico filhinho,a que extremos ele chegou,a levar leite ao domicílio. Passou de largo,pois,não o fosse ele ver. Não haveria de gostar,certamente. Ainda há dias o convidara para um chá. Ainda há dias o levara a uma exposição de quadros,da sua mais que tudo. Ainda há dias o convidara para um"party". Não era a primeira vez que ele fazia de distribuidor,nem seria a última,que a bolsa não dava para aquilo que ele queria. Lançava,assm,mão daquele honesto expediente para arranjar mais uns cobres.

ACUMULAÇÕES

Pode dizer-se que o homem fora roubado. Não lhe tinham metido a mão ao bolso,mas impediram-no de o encher um pouco mais. Era um homem que acumulava,quer dizer,tinha duas ocupações,porque uma só não lhe dava para sustentar a família como ele queria. Mas,segundo constava,lá conseguia dar conta dos dois recados. Não aconteceu milagre,apenas ele tinha de se fartar de trabalhar. Como se sabe,porém,quem corre por gosto não cansa. Entretanto,havia outro homem que andava muito preocupado com a saúde do acumulador. Assim a trabalhar tanto,coitado,era capaz de se finar. Tinha de intervir,já que ninguém se atrevia. E vai daí,aproveitando uma certa assembleia,propôs que ,dali em diante,cessasssem algumas acumulações,em que se incluía a do infeliz ,que certamente morreria se não lhe acudissem rapidamente. Não deviam ser permitidos tais exageros,para bem, afinal,desses acumuladores. A proposta foi aprovada,pois visava um alto desígnio. E lá se foi uma acumulação,por sinal,bem modesta,mas que fazia muito jeito.

CHÃO SAGRADO

São apenas uns palmos de terra. Vêm todos eles de um tetravô. Que a sua alma descanse em paz,pois têm-me dado um grande jeito. Nem todos os pedaços que amanho têm esta origem. Aquele além ia-me custando os olhos da cara. Não descansei enquanto não pus nele a minha marca. As horas que eu e a minha mulher gastámos a fazer contas e a refazê-las,sonhando ao mesmo tempo. Mais um ano e será nosso. E assim conteceu. Mas não foi só aquele. Lembrei-me de o citar porque é o melhor. Não é por ter sido eu a comprá-lo,mas está ali um belo tracto. É pena serem todos pequenos,mas juntos ,dava para ter uma boa quinta. Têm-me dito que devia trocar alguns,de maneira a formarem-se parcelas de tamanho mais azado para os granjeios. Sempre que me falam nisso,fico fora de mim. Eu,abandonar o chão sagrado dos meus antepassados,e mais o que acrescentei com,pode dizer-se,sangue,suor e lágrimas? Nunca,enquanto viver. E os meus filhos,estou seguro disso,lêem pela mesma cartilha. Além do mais,onde é que se iriam encontrar terras como aquelas que nós temos? Não há melhor aqui nas redondezas. Só as carradas de estrume que eu lá tenho espalhado,para não falar dos químicos,que me têm custado bom dinheiro.Desentranham-se em milho e batata que é um gosto. E a qualidade do vinho? Se produzisse mais,faziam bicha aí à porta.

PROMESSA

O diretor tinha lá os seus gostos. E um deles era o seguinte. Os seus colaboradores,antes de publicarem os seus trabalhos,deviam apresentá-los em público,para serem discutidos. Quer dizer,fechavam as sessões com um debate. Para esse diretor,o ideal seria que não passasse uma semana sem uma sessão. Compreende-se. Era uma prova de que a sua casa estava bem viva. Apresentar era simples,o pior era o resto. E está-se mesmo a ver porquê. É que há gente que se pela por ver os outros atrapalhados,pregando-lhes rasteiras. Ninguém gosta de ser rasteirado e,assim,as ofertas,às vezes ,escasseavam. Quando isso sucedia, era ele mesmo que dava o corpo ao manifesto,pois era homem de muitos recursos,era homem para muitas batalhas. Mas o diretor insistia,batendo a todas as portas,mesmo àquelas que se tinham aberto de véspera. E foi o que aconteceu a um jovem. Ainda não tinha aquecido a lugar e lá estava o diretor a informá-lo do seu gosto. Tanto bateu,que o jovem não teve outro remédio,se não dizer que sim. Entre mortos e feridos,alguém há-de escapar. Como era a primeira vez que se via em tais assados,achou que não lhe ficaria mal ler o que tinha a dizer. E lá escreveu o arrasoado. Mas não se veio a servir dele. Cumpriria uma promessa,que não é altura de revelar,caso dispensasse a cábula. E foi o que fez. Cumpriu-a.

PROMESSA DE PRAIA

No verão,o calor era de abrasar. Tinha sido sempre assim naquela terra. Os que nela teimavam em permanecer,ter-se-iam conformado. Quando mal ,nunca pior. Havia,de facto,casos piores,ora se havia. Mas não seria de admirar que a alguns,se não a todos,tivesse brotado o desejo de verem ali,ou lá perto, uma praia,para se poderem refrescar. Bom jeito lhes faria,quando largassem o trabalho,ou quando não tivessem algo para fazer,o que deveria suceder muitas vezes. Seria isto apenas um simples e inofensivo desejo,nada mais. Mas um desejo de todo justificado,sem qualquer dúvida. Teriam pensado,uma vez por outra,que talvez ele se pudesse satisfazer. Quem sabe? Acontece tanta coisa aparentemente impossivel. E um dia,o que é que havia de suceder? Apareceu por lá um senhor de falinhas mansas,todo convincente,de muitas artes e manhas,a prometer-lhes uma. Era garantido. Poderiam ir já vendo-se banhar em frescas águas. Ele era um homem de muitos recursos,já postos à prova,com êxito,noutros cenários. Para tal,bastava que nele confiassem e lhe dessem os votos. Assim fizeram,mas praia é que nunca lá viram. Ter-se-ia isto passado? Parece que sim. É que ainda há pouco,por um mero acaso,alguém,de muita idade,lembrava uma quadra,ouvida bastas vezes quando por lá andara,que se fazia eco de tal promessa.

A PREÇO DE SALDO

Já ia alta a manhã,mas ainda estava frio. A feira dava os últimos ares da sua muita graça. O piso dos arruamentos,de contornos irregulares,ao Deus dará,estava numa lástima,por causa da chuva de véspera. Aqui e ali viam-se restos de fogueiras. De madrugada,que ali levantavam-se cedo,devia ter estado de bater o queixo. Junto a toldos,assavam-se e serviam-se frangos.Mesas não havia. Também se dispensavam,que aquela gente não era de cerimónias. As mãos e as bocas não se puderam lavar,que água corrente só lá na vila. Ainda houve tempo de mercar dois chapéus de chuva a preço de saldo. Quem se livrara deles precisava de se despachar,pois tinha de ir armar banca noutra terra. Andava a semana num virote,com apenas um dia de descanso,para se ir fornecer. Enquanto se era novo é que se tinha de dar. As suas cores despertavam inveja,mas a barriga não,de muito saliente,talvez da cerveja. Duas filhitas,louras como trigo maduro,nã o largavam,a pedir umas moedas para guloseimas. A vila,lá muito em cima,alargara-se,com sinais de que morava ali outra gente. Talvez nem lá residissem. As novas casas estavam ali para os receber pelas férias ou pelo Natal,ou então para quando voltassem de vez,que alguns quereriam lá acabar,onde havia feiras como deviam ser.

DA CABEÇA AOS PÉS

Ia ali o homem muito preocupado. Não era para menos. Como é que se teria comportado, naquela medonha noite, a sua querida amendoeira? Fizera um vendaval dos diabos e o resultado estava bem à vista. O caminho encontrava-se juncado de folhas e de raminhos. A primavera ainda mal começara e a vegetação não ganhara vigor para altos feitos.Era esta amendoeira a única que restava de uma meia dúzia que em tempos ali fizera pela vida. Tinham ido desaparecendo a pouco e pouco,umas por doença,outras por capricho dos jardineiros. Enamorara-se dela e,sempre que por ela passava,gostava de a observar com detença,da cabeça aos pés.Teria ela suportado aquelas violentas vergastadas? Pois teve uma grande alegria. Estava ali sã que nem um pêro. Apenas uma ou outra folhinha voara. Ainda que para ali sozinha,soubera resistir à dura intempérie. Deve-lhe ter dado muito trabalho e muitas ralações,pois,naquele ano,os ramos quase que vergavam,a tanta novidade. Dava gosto vê-los. Bem encostadas umas às outras,as amendoinhas lá conseguiram escapar de uma queda,que seria fatal. Talvez por isso,parecia ao homem ouvir por ali cantares de grande vitória.

MOEDAS E OLHARES

Eram dois velhos que viviam de esmolas bem diversas. Um, recolhia moedas, o outro, aceitava olhares. Tinham montado banca na mesma rua,uma rua movimentada,por ser vizinha de um mercado. O das moedas era alto,esgalgado,de cara magra,ossuda,macilenta. Coxeava. Vinha de longe,em autocarro. Logo de manhã cedo,lá se instalava no seu posto,o poial de uma janela ,de que não pagava renda. Tinha a sua clientela fiel,com quem chegava a conversar demoradamente. Era visto,de quando em vez,a conferir a caixa. Fecharia a loja,quando já lhe chegava para o que ele queria. O dos olhares,que se apoiava numa bengala, que parecia o tronco de uma árvore,era,ao contrário,baixo,encorpado,de carita redonda,rosada. Dava gosto olhar para ele. Lembrava um bebé rechonchudo. Este dispensava conversa. Para conversar,tinha a família,quando regressassem do trabalho. O seu poiso era também um poial,o poial de uma janela da sua cave. Não se sentiria bem,sozinho lá no buraco. Estes dois velhos nunca foram vistos juntos. Não se deveriam entender. Tinham necessidades bem diferentes,um,de moedas,o outro,de olhares.

SINAIS REDENTORES

Era para ter pena dele. Sempre curvado,cabisbaixo,parecia arrastar um fardo desmesurado. Uma estátua de desalento. Dera em engordar e o ventre dava bem nas vistas,de tão projetado,quase a estoirar. Era isto,certamente,o resultado da vida que levava. Tornara-se num devorador de telenovelas. Deitava-se tarde,para não perder uma sequer,e saía da cama já a manhã ia alta. Quase não se mexia. Ainda lia,mas só jornais,à cata de sinais redentores. Eram eles,afinal,que o obrigavam a fazer algum exercício,mas um quase nada,pois bastava-lhe atravessar a rua para os comprar. Já lá ia o tempo em que eram deixados à porta de casa. Belo tempo esse,de que tinha imensas saudades. Dava gosto viver,mas depois passara a ser uma sensaboria,um fastio. Ele não era um Creso,mas não estava nada mal. Os teres abundavam,aqui e ali. Alguns até tinham mudado de dono,mas muito valorizados. Coisa muito estranha,pois,aquela do seu estar. Que mal seria o dele? E assim se manteve,sem nunca o revelar.

DAVA GOSTO

Para baixo todos os santos ajudam. Mas nem deles precisavam. Eram jovens,era manhã e o bem-estar enchia-os. Elas usaram o elevador,eles serviram-se das escadas,quase a voar. Eram oito,quatro pares,quatro lindo pares. Eles,sãos e escorreitos. Elas,sãs e escorreitas. Tinham sido uma noite de sábado e uma madrugada de domingo bem passadas. Viviam no mesmo andar,em sociedade. Era melhor do que alugarem quartos. Juntaram-se à saída. E ali ficaram uns momentos,rindo e assentando ideias. Dava gosto olhar para eles e elas. Descontraídos,desinibidos,de cores sadias. Lembravam maquinismos acabados de sair da fábrica,novinhos em folha. Nem uma mácula,tudo só brilho. Lembravam, também,cavalos à solta em vastos prados. Tudo aquilo para eles,erva tenra a perder de vista e água a jorros. O que eles corriam,como eles o faziam. Dava gosto olhar para eles.

SENSAÇÃO NOVA

Foi como um deslumbramento,uma volúpia. Estar ali a ver o amigo a dispor de um chefe que mandava muito ,que tinha um ror de pessoas dele dependentes. Tratava-se de conseguir uma transferência. Pelas vias normais,só dali a muito tempo,no caso de atendimento. Mas havia pressa. E isso foi possível logo no dia seguinte,talvez pela consagrada chave de conveniência urgente de serviço. Mas não se ficou por aqui. Foi necessária,novamente,a intervenção do amigo para uma outra transferência. E o amigo não se fez rogado. Parecia,até,gostar que lhe batessem à porta. Os seus desejos eram,afinal,ordens. E logo ali,mais uma vez à sua vista,sem regateios,se lavrou o despacho. Não mais esqueceu a sensação nova que o visitara. Ali,bem ao lado do amigo,todo-poderoso,naquele gabinete de pessoa muito importante,ver as suas pretensões tornadas efetivas,sem qualquer obstáculo. Era como um sonho das mil e uma noites. E dali em diante, compreendeu melhor porque se luta tanto pelo poder.

CIDADÃ DO MUNDO

Alta,magra,pálida,cabeça oxigenada,quase branca,um mostruário de "piercings",nas orelhas,enfeitando a boca e os olhos,quarenta anos confessados. Dirigiu-se a uma mesa,ao fundo da sala,poisou um maço de tabaco,foi ao balcão buscar um café,sentou-se e acendeu um cigarro. A duas mesas de distância,estava uma senhora de idade vetusta e o marido,um velho também. Logo a seguir,junto a uma janela,um cavalheiro,já avô. Estão feitas as apresentações. O cavalheiro pega no seu cachimbo,acende-o e volta-se ,duas ou três vezes,para melhor observar a cabeça oxigenada. Na última vez,pergunta à senhora de idade vetusta se está a incomodar. Esteja à vontade,que não incomoda nada. Até estou a gostar,pois o seu tabaco é perfumado. E ali começou uma conversa ,que parecia ser a continuação de muitas outras,tal a naturalidade do diz tu e depois eu. Aproveitando ocasião propícia,a cabeça oxigenada interveio,entrando no jogo. E foi uma bonita troca de impressões a quatro. E foi também uma agradável surpresa,pois o comando das operações passou,com todo o merecimento,a pertencer-lhe. Pode dizer-se que era uma cidadã do mundo. Só na Suiça estivera quatro saudosos anos,os melhores da sua vida. Aquilo é que é um país. Que civismo,que organização,que asseio. Estava envolvida no movimento de proteção dos animais. Coitados deles. É preciso quem os defenda. Fazem-se hoje tão boas imitações,que é uma dor de alma saber-se que continuam a ser dizimados por causa das suas peles. E assim por diante. Os empregados estavam de boca aberta,surpresos e suspensos. Tinham de passar a tratá-la com mais consideração. O casal de velhos teve de abandonar a cena,pois se estava fazendo tarde,e os outros dois lá continuaram na vonversa.

UMA GRANDE DESCOBERTA

Ele estava muito satisfeito,tão satisfeito,que ali à roda diziam que nunca o tinham visto assim. O caso não era,de facto,para menos. Eles é que não sabiam do que se tratava,pois tinha-se fechado em copas. Os outros que se admirassem,ou julgassem o que entendessem. Isso pouco lhe importava.Afinal,do que é que se tratava? É que,certa noite,uma noite muito escura, ele tinha feito uma grande descoberta,pelo menos assim pensava que tivesse sido. Que era uma descoberta e que era grande. Podia estar enganado,mas isso já não era com ele.E um dia,depois ,também,de muito pensar,decidiu revelá-la a um que ia ali a passar,porque com os amigos não valia a pena. Lá vens tu com mais uma das tuas. E fariam chacota.Durante muito tempo ele pensara que alguns não se lhe chegavam por julgarem que ele se considerava superior. E isso não toleravam,não suportavam,alás,com toda a razão. Ele que ficasse por lá a curtir a sua superioridade.Mas naquela noite,uma noite muito escura,a deusa da inspiração fizera-lhe uma visita. Tinha de ser,porque sozinho não chegava lá. Sem essa essencial ajuda,continuaria no saber antigo.E qual fora essa grande descoberta? Que eles não se lhe chegavam,simplesmente,por se acharem muito

segunda-feira, 29 de maio de 2017

DESEMBARAÇO

Ali ia ela,serena,segura de si,como claramente o demonstrou ao longo de acidentado percurso. Era uma moça esbelta,de cabeça bem modelada,artisticamente composta. Amparava-a uma varinha de invisual,que ela elegantemente manobrava.Apetecia segui-la e ajudá-la,mas de ajuda não precisou. Saiu do comboio e encaminhou-se, tranquila,para a escada rolante. Desceu-a naturalmente,tal como outros. Saiu dela,sem uma hesitação,como se estivesse a ver os degraus a terminarem. Alguém ainda pensou que ela iria ter ali um sério obstáculo,mas muito se enganou.Desceu outras escadas,de mistura com a multidão,com o mesmo desembaraço. Rodou à direita,quando foi caso disso,e dirigiu-se para uma das mangas de acesso à plataforma do metro,usando, como qualquer um,o seu passe. Desceu outras escadas e entrou,sem auxílio,numa das carruagenns.Sempre direita,sempre elegante.

LÁGRIMAS

Viera ali pela última vez. Fora buscar o resto dos seus documentos. No átrio e na escadaria,estavam alguns alunos,talvez duas dezenas. Cumprimentou-os a todos,um a um,silenciosamente.Desce a rampa íngreme muito devagar,como a demorar aqueles momentos muito especiais. Acompanha-o um amigo.De súbito,um aluno,levado não se sabe porque sentimento,é assaltado por um desejo,o de novamente dele se despedir. Outros se solidarizam. E em grande correria vão ao seu encontro.Ele pára e volta-se,talvez admirado. O companheiro distancia-se. E as mãos mais uma vez se estreitam. Dos seus olhos,jorram abundantes lágrimas caladas. Dalguns alunos,também. Para não mais esquecer.

MAS AUTÊNTICOS

Depois,um deles,representando os que não abalaram,ficando presos à terra onde tinham nascido,ouviria a mulher continuamente,porque não fizeste como tantos? Eles é que tiveram juízo. Agora têm ali uma bela casa,bem mobilada,com tudo o que é preciso para uma vida boa,que eu já vi. E nós? Sempre com os mesmos tarecos,a cair de velhos e de podres,a viver neste casebre,que deixa entrar o frio por todos os buracos. O que ganhaste tu com isso ? Sim,recordo-me bem,dizias que amavas muito esta terra,que a não querias abandonar,que ela precisava de ti,por isto,e mais aquilo,coisas que eu não entendia. Agora,todos se riem de ti. Não passas de um Zé Ninguém,quase sem eira,nem beira. E o que é pior é que arrastaste contigo os teus filhos,que eu já pouco me importo. Só tenho é pena deles. De ti,não tenho,pois sei que continuas a pensar que tu é que tinhas razão. És assim,e assim hás-de morrer. Não te devias ter casado. Quem tem ideias como as tuas não deve amarrar ninguém a si. Fica livre,para não se arrepender. E eu sei que tu já te arrependeste. Tu és bom,e não queres o mal para os outros,sobretudo para os teus. Mas tu podes pouco,e carregas com esse peso de não teres conseguido fazer nada de jeito por nós. E ele,na figura de todos quantos tinham ficado,choraria. Porque não teriam abalado também? Mas teria sido uma fraqueza passageira. Ele é que tivera razão,ele e os outros que tinham ficado. Estavam pobres,era certo,mas autênticos. Os que tinham ido por esse mundo fora não se sabia o que eram. Tinham,simplesmente,deixado de ser,para apenas ter.

FEIO ESPINHO

No melhor pano cai a nódoa. Eram ralos entupidos,era cinza de cigarro por toda a superfície,eram pedaços de papel higiénico no chão e na bancada do lavatório. Era este o triste estado daquela "salle de bains" de um rico conjunto de amplos e lindos espaços ,de largos e ricos corredores. Acontecia tal mácula quando a utilizava certa gente,gente com cara de fome,pálida,alheada. Para o papel, havia um incentivo. É que o secador padecia de uma avaria crónica. Debitava uma corrente tão fria,que afugentava qualquer um. E quem pagava eram os rolos das sanitas. Os parcos recursos não dariam para a reparação,seria o mais certo. Pena maior era o de não permitirem engordar os magros salários. Se tal acontecesse,talvez um milagre,certamente outras caras eles apresentariam e também outros procedimentos. Era uma nódoa aparentemente escusada. Mas ali estava um grosseiro quadro de bastidores a mostrar como uma bela rosa pode conviver com um feio espinho.

A FOGO

Aquelas marcas não mais seriam olvidadas,referências de um trajeto que tantas vezes se fizera de forma lúdica. E era a vala que sangrava a lezíria,e era a casa da guarda, onde estavam assinalados níveis de cheias,e era o mar de vinhas,para onde quer que a vista se estendesse,e era o túnel de ramalhudas amoreiras,e eram os resguardos na ponte,abrigos em caso de intempestiva passagem de toiros,e era o mítico Tejo,e era a fonte de salobra água,que não se enjeitava,e era o carreiro,talvez do tempo dos mouros,que circundava o morro. Foram marcas como que gravadas a fogo.

ESTRATAGEMA

Quando já se tinham esquecido dele,lá aparece mais uma vez. Andará pelos vinte e poucos anos. Alguém cuidará dele. A cara não é de fome. Não veste e calça como um príncipe,mas não traz farrapos. Fala consigo,às vezes de alto. Viverá de esmolas. Para as estimular,usa um estratagema,que se julgaria estar para além das suas capacidades. É que trata todos por doutor ou doutora. Ele lá saberá que assim fica com as carteiras mais prontas para se abrirem. Pelo menos,há testemunhas dispostas a afirmar que a artimanha resulta quase sempre. Dificil é,de facto,resistir a tal tratamento. A maioria não quererá desmenti-lo,sobretudo,quando há gente por perto. E correspondem,não muito de acordo com tão alta categoria. Ele,também,não estará à espera de mais.

CANETA DE TINTA VERDE

Aparentava uns quarenta anos e na boca faltavam-lhe alguns dentes da frente. Os olhos eram de criança. Estaria numa grande ansiedade,pois, mal alguém lhe apareceu ,não se conteve. Escreva aqui nesta agenda o que lhe vou dizer. Tinha já uma caneta preparada. A tinta era de um verde claro,muito brilhante. Tratava-se do nome de um médico e da sua morada,da qual não estava muito certo,mas parecia isto ser-lhe indiferente. Não sabia escrever. Não calhara. Mas olhe que ainda vai a tempo. E,depois,tem aqui uma bonita caneta. Via-se que gostava muito daquele brinquedo. Fora uma prenda da mãe,pelos seus anos. E tendo ouvido gabá-la,deixara-o muito satisfeito. Não sabia escrever,mas sabia ler. E quando o disse,quereria que se soubesse que ele não era para ali um qualquer. Pois não era.

BARREIRAS AGRESTES

O trator não podia ir a todos os cantos. Assim,alguns caminhos tinham de ser abertos pelo esforço dos braços,tarefa nem sempre fácil,pois,nalguns locais,as barreiras eram agrestes,por via de abundante presença de espinhosas. Para além dos espinhos,havia ainda a sílica. Uma poeira brilhante soltava-se ao mais ligeiro movimento,impregnando o ar. O suor retinha-a e a respiração também. O calor acrescia o mal estar. E assim,adiava-se a tarefa para melhor oportunidade,pela fresquinha da manhã ou do fim do dia. Os espinhos é que lá permaneciam,à espera de uma mão ou de um pé mais delicados,bem como a poalha abrasiva,que revestia a pele com uma camada de lixa.

NO TOPO

Tal como na selva. Parecia ter chegado a vez dele. O outro,o chefe do momento,o mandão,o rei,como se lhe queira chamar,já não era o mesmo de há uns tempos,tempos que não havia meio de mudar de dono,tempos do quer,posso e mando. O que ele passara,ao mando dele,não o desejava ao maior "inimigo". Naquela altura é que era aproveitar. Era altura de o desafiar,que ele já não era o mesmo de tempos atrás,de tempos de vitória,que ainda cheirava. A volúpia que sentia,um prazer novo. É que já antevia uma hora nova,a hora em que o passariam a respeitar,como se tinha feito com o outro. Era um prazer muito grande,uma coisa que ele nunca tinha sentido. O prazer seria ainda maior,certamente,quando ele lá estivesse no topo,no lugar do "inimigo". Bastava ter visto e sentido,como o ainda chefe se pavoneava por essas ruas e praças,quando se expunha. Era o que ele iria fazer quando o removesse lá do cadeirão,daquele poiso tão sonhado,que até lhe doíam,às vezes,os sonhos,de tão vividos que eles eram. Havia de lhes mostrar,sobretudo a ele,ao que iria desalojar,o que era pavonear-se. Não teriam sido em vão os esforços que fizera para bem o fazer. Haveria de mostrar,sobretudo a ele,ao derrotado,o que era pavonear-se.

GOMO A GOMO

Era daqueles velhos,pode dizer-se,que nunca quisera nada com o mal. E porque assim era,volta não volta,pensava nele. E,quando tal sucedia,sempre o via a comer uma laranja. Era a fruta de que ele mais gostava. Mas não uma qualquer laranja. Ele,que era a modéstia em pessoa,nisso tinha requintes. Tinha de ser uma das grandes,uma laranja de umbigo,uma laranja da Baía. Comia-a com evidente prazer,gomo a gomo,depois de a ter ,cuidadosamente, descascado. Era também um prazer vê-lo nesse ritual,quase sagrado. Era um velho de poucos teres,por isso,de muito fraco alcance. Assim, tão limitado,parecia ter concentrado na laranja,na laranja da Baía,todos os seus legítimos anseios.

UM GRANDE PRAZER

Passara-se aquela porta de vila que tinha muito para contar e fora um inesperado mergulho no passado. O ar solene,o desenho dos armários,o balcão alto,quem se encontrava por detrás dele,de bata muito azul,brilhante. Era um senhor aí de uns cinquenta anos,um tanto para o baixo,de cabelo grisalho,de cara pálida,gorduchinha,de sobrancelhas bastas,de modos cerimoniosos,solícito,do estilo de que o cliente tem sempre razão. Em que podia ser ele útil? Arranjava-se já. Ficasse descansado,que ia sair dali como novo,tal como tivesse vindo diretamente da fábrica. Era um instante. Foi só instalar o óculo próprio da ação a operar ,mexer aqui e ali,e pronto,já estava. Teria ali relógio para uma vida,para sempre. Então,quanto é? Não era nada. Tinha sido um grande prazer.

SOBRE O CAMPO BRANCO

Nas imediações de Castro Verde,há uma vasta zona de solos xistosos,de tons claros,o que contrasta com as cores avermelhada ou parda de zonas vizinhas,tendo sido,por isso,designada, desde há muito, por Campo Branco. A cor caraterística resulta do facto dessa zona,pela sua topografia relativamente plana,estar sujeita a condições de redução. Tendo o ferro forte representação nos solos, era de esperar que tal acontecesse. É que o ferro,possuindo diferentes estados de oxidação,é muito sensível a ambientes de escassez de oxigénio. Quando trivalente,há tendência para os tons serem avermelhados ou amarelados,quando bivalente,por efeito de redução,é a cor esbranquiçada que prevalece. Sendo o manganês um elemento que muito frequentemente anda associado ao ferro,e tendo ele também diferentes estados de oxidação,é de esperar,também,que ele intervenha.

O CORAÇÃO TEM RAZÕES ...

Pode dizer-se que era o médico dos pobres. Vivia um tanto marginalizado e teria as suas dificuldades. Um seu procedimento contribuíra,em grande parte,para isso. Coisas da vida. Aconteceu que uma senhora casada decidiu passar a ser sua companheira. Naquele tempo,isso caiu muito mal. Não lhe perdoavam e apontavam-no a dedo. Uma pessoa como ele tinha de se dar ao respeito. O certo é que eles não ligaram. Ela deixou-se ficar e ele aceitou-a como sua mulher. A senhora dedicara-se inteiramente à sua nova casa e ajudava-o na sua vida. Atendia os clientes e aprendeu,até,uns rudimentos de enfermagem. Ela é quem dava as injecções. Era,assim,uma espécie de empresa familiar. Tinha automóvel,mas raramente o utilizava. Preferia fazer as visitas a pé,enfrentando o "inimigo". Cobrava honorários modestos,esquecendo-se,às vezes,de os lembrar. Procurava,também,não sobrecarregar os doentes com gastos de farmácia,recorrrendo a receituário caseiro. Era capaz de considerar que para males já bastavam os do corpo. A figura era franzina,acentuando-lhe o ar humilde. Do conjunto,era a voz que se impunha,uma voz arrastada,serena,cheia. Fora a voz que rendera a senhora? Quem sabe? Conta-se que certa marqueza casou com o sacristão da sua capela rica pela elegância posta no acolitar. É que o coração tem razões que a razão desconhece.

FOME OCULTA

Eram duas comadres que já há muito se não viam,coisas que acontecem a quem tem a sua vida. Ai comadre,tenho andado muito mal. Não sabia o que tinha. Eu dormia,eu descansava,eu comia,mas não me sentia nada bem. Era um mal estar,que não o queria para a comadre. Um dia,não podendo mais,fui ao médico. E sabe o que ele me disse? Que o que eu tinha era fome. Fome,eu? Mas,doutor,podemos ter muitas necessidades,mas lá em casa não se passa fome,graças a Deus. Mas o certo é que a senhora tem mesmo fome. Não dá é por ela. É uma fome oculta. Que coisa tão esquisita. Pode explicar-me? Com todo o gosto,aliás,é a minha obrigação. Sabe,a nossa comida tem de ser muito variada,de modo a garantir a ingestão de coisas essenciais,na quantidade necessária.  E na comida da senhora há uma coisa essencial que está entrando em quantidade insuficiente. E eu,comadre,de boca aberta. Então,doutor,o que é que tenho de fazer? E ele lá me passou uma receita,recomendando-me que eu cumprisse o que lá ia. É o que tenho feito há já uns dias. Pois estou a passar muito melhor,fique a comadre sabendo. O médico disse que a cura completa ia levar o seu tempo. É o que eu espero,pois como andei,aquilo não era viver.

SORTE GRANDE

Encontrara-o por acaso e não estava à espera de qualquer lembrança. Lá na terra,quando o visitava,ele nunca se esquecia de lhe dar umas moeditas,que,juntas a outras,davam-lhe para uma época inteira. Também não se alargava muito,um pirolito,umas pevides,uns tremoços,um cinemazito,coisas assim. Mas naquele dia,não. Naquele dia, foi um mãos-largas,uma autêntica fortuna,nem queria acreditar. A sua cara,quase sempre para o grave,como que resplandecia de contentamento. O que lhe teria acontecido? Não se soube naquela altura,mas não se perdeu pela demora. Era perdido pela lotaria,pelo que os cauteleiros não lhe largavam a porta. E um dia,certamente, o da fortuna,saiu-lhe a sorte grande.Ia sendo a desgraça dele. Convencera-se,talvez,de que a sorte o tinha escolhido,pelo que não se cansava de a procurar. Comprava bilhetes inteiros,às dúzias. E sucedeu o que é costumeiro em casos destes. Não me hás-de fugir. Saís-te-me uma vez ao caminho,mas não será a última,eu te garanto. Escapava-se-lhe como por encanto,trocando-lhe as voltas,mas ele não desistia. Um rio de dinheiro. Acabou por pedi-lo emprestado a altos juros,hipotecando. Fez isso uma e mais vezes. Se não tivesse parado,ficaria sem nada. O que lhe valeu foi ter começado com muito,com larga margem,pois,para desbaratar.

AR DE PÂNICO

Os pavores que por aí se escondem. O que vale é o esquecimento,mas, ao mínimo sinal de alarme,lá eles irrompem de novo,até com mais ímpeto. Ele não tinha ar de mestre de obras,ou de fiscal delas,pelo menos assim lhe parecia,pois foi tomado como tal,mas talvez um qualquer de fora o fosse. Subira as escadas,já muito gastas,dos anos,e batera à porta. Surgiu logo uma senhora,de muita idade, muito aflita. É por causa da demolição? O ar de pânico era tão claro,que metia dó. Oh não,sossegue,que era o que se impunha,ainda que certezas não houvesse,nem perto,nem longe. Então,porque bateu? Continuava desassossegada. Ainda bem que é por outra coisa. Não calcula as apreensões que vão por aqui. Será hoje,sérá amanhã? Nem durmo com jeito. Acordo,às vezes,sobressaltada,a pensar que me vão pôr fora. Aos anos que aqui vivo. Aqui queria morrer. E quase chorava. Mas está assim para breve? Corria há tempos por aí que não demoraria muito. Mas certamente não os vão deixar na rua. Prometeram que sim,que nos dariam uma casinha. Mas sabe,de promessas está o mundo cheio. Estamos fartos de ouvir. Só quando estiver lá dentro é que acredito,e descanso.

MAGRO CHÃO

Aquilo era uma carga de trabalhos. Terra havia,mas a rocha granítica aflorava a cada passo. Os cuidados que eram obrigados a ter para não molestar as aivecas. Volta não volta,lá se ia uma relha. Eram curvas e contracurvas,pois raramente se via pela frente tracto sem tropeços. Mas a vontade e a necessidade de arrancar daquele magro chão alguma coisa que se visse eram de respeito. Fora o que lhes coubera em rifa e ainda tinham de se dar por muito afortunados,já que tantos nem um quintalito lhes saíra. É claro que isto não dava para manter a família como alguns queriam. E assim,lá iam esgravatar por outras bandas,fazendo uso de dons que Deus lhes dera. Uns,mais audazes,até se atreviam a ir para longe por temporadas. Mas quando chegava a ocasião da ceifa ,lá se arranjavam para estarem presentes. E aquela rocha que tantas aflições lhes trouxera,quando das sementeiras,servia-lhes,agora,de eira. Lages não faltavam,com as dimensões e a forma requeridas. Para o grão não se quebrar com o bater dos malhos,tinham de os revestir com uma película elástica. E não havia melhor protecção do que a fabricada com bosta de vaca. Era prática que se perdia no tempo,talvez do tempo dos árabes ou de um mais detrás,e que nunca tinham abandonado. Não consta que alguma vez o pão fosse rejeitado por isso. Saber-lhes-ia sempre a coisa caída do céu.

DO CÉU

Não estava sonhando, aquilo era mesmo um osso,que alguém acabara de lançar de uma janela. Há que tempos não dava com uma iguaria assim. Vinha mesmo a calhar. Era um cãozinho que estava passando um mau bocado,pois fora abandonado. Ele que se arranjasse e era o que ele andava fazendo.Observara em volta,receoso,temendo a concorrência. A coisa estava feia,era o salve-se quem puder. Ainda há dias não levara a melhor, por falta de forças. Até lhe custava lembrá-lo,pois saíra também muito doído,do corpo e de não sabia mais o quê.Estava mesmo a precisar de uma boa refeição e desta vez ela vinha-lhe do céu. Não se via competidor. Ainda assim,só tranquilizou quando se meteu no buraco da sua predilecção,um buraco limpo,fresquinho. Era ali que ele costumava pernoitar.Mas para aqui se ver,os saltos que teve de dar e os cuidados que teve de pôr para não largar o achado. Ficou exausto. Aproveitou para examinar melhor o pitéu. Era,na verdade, um belo osso,estava ele confirmando. A carne que ainda trazia. Um verdadeiro milagre. Que o milagre se repetisse,muitas e muitas vezes,ia implorando,enquanto os bons pedaços se sumiam lá bem para o seu estômago,que já estava a entrar em fase de autofagia.

UM RICO TETO

Os baldios iam acabando lá no bairro onde ele nascera e do qual não queria sair. Um dia,chegou a vez ao que mais resistira e onde ele arranjara morada. Neste transe,voltou-se para os desvãos de prédios,mas esses tinham também os dias contados. Os que restavam não passavam de uns buraquinhos. O que fazer? Emigrar,nem pensar nisso. Seria a sua morte. Havia de encontrar coisa capaz. E assim aconteceu. Pode dizer-se que era uma caverna,mas não uma qualquer. Um verdadeiro achado. Um rico teto. Abria-se no termo de uma rua que não tivera seguimento,por lhe ter surgido pela frente uma respeitável barreira. Um beco,afinal,um beco largo,com passeios largos. Mas também um beco especial,pois a fechá-lo atravessava-se um prédio assente em pilares. O amplo vão que assim se formara,um futuro túnel,enchera-se de carros,que respeitavam as bermas. E era numa delas que ele se instalara com armas e bagagens,cama incluída. Não vivia só. Por ali também se acolhiam gatos. E era com eles,com os seus vizinhos,que ele conversava.

MADRASTA MÁ

Não era para acreditar. Podia lá ter acontecido o que ele estava para ali a dizer. A ser assim,fora mesmo o demónio,o demónio em pessoa, que o tentara. O diabo daquele cofre,que estivera ali,de bocarra bem aberta,a provocá-lo,de braços bem abertos. Atrevera-se algumas vezes,que ele ,coitado,não tivera forças para resistir. Mas o seu anjo da guarda nunca o desamparara,colaborando como os anjos da guarda sabem fazer,na perfeição. Era um anjo que tinha muita pena dos rapazinhos pobres,indo ao ponto de lhes proporionar ocasiões isentas de perigos. Foi o que lhe valeu,se não teria sido apanhado com a boca na botija,o que seria uma grande vergonha. Admirava-se ele como só muito tarde dera conta daqueles atrevimentos. Deviam ser das coisas que vão sucedendo apenas com o passar dos anos,vá-se lá saber porquê. Talvez necessitem de um tempo de amadurecimento,quem sabe? E,chegando a altura própria,lá desabrocham. Quem o estivera a ouvir,pessoa muito compreensiva,desculpara-o de todo. O teu mal foi teres sido um menino carenciado. Deita as culpas à vida que te calhou. Para uns,ela é mãe extremosa,para outros,madrasta má,mesmo muito má. Seria difícil,impossível até,esquecer-se. Marcara-o como que a fogo o que fizera,e não devia ter feito. E assim,volta não volta,sem aviso prévio,lá surgem espetros do passado,amargurando-lhe alma e corpo,deixando-o a sangrar. Razão tinha o amigo.Tivera muito azar em lhe ter calhado tal madrasta.

O TIO CHICO

O velho tinha razão para estar preocupado. Volta não volta,dava-lhe para inspeccionar a ponta da bengala. Tenha cautela,pois parece que ela já não é de confiança. Tem razão,mas sabe, acostumei-me a ela. Comprei-a,há uns anos, numa feira,a feira de Santiago,lá para o Norte. Mas estou a ver que tenho de arranjar outra. E ali se pôs à conversa. Tivera taberna ali perto,mas a coisa já não dava,e também estava sem paciência. Dera para juntar alguma coisa. Até comprei para aí uns andares. Um deles é numa praia,aqui perto. De vez em quando,vou até lá. Têm de me levar,pois já não guio.Mas quando podia,fui muitas vezes lá à terra. Até fixei os quilómetros,cento e quatorze. Aquilo não falhava. Agora,parece que fica mais perto,pois há uma estrada nova. E ali continuaria,só que apareceu gente que ele conhecia muito bem,talvez por ser um antigo fiel frequentador da sua taberna. Olá tio Chico,como vai?

PORTA FECHADA

Coitado do rapaz. Fazendo das tripas,coração,atrevera-se a ir lá para muito longe. Coisas da vida,de quem quer ganhar mais uns cobres. A coisa não ia ser,porém, pera doce,que havia riscos a correr. Um desses riscos filou-o estava ele quase chegando à meta. Pois foi precisamente nessa altura que um aviso muito sério lhe chegou. Se ele se atrasasse,um dia sequer,no regresso,não seria um risco que o esperava,mas uma certeza. Encontraria a porta fechada,com estrondo. E assim,não teve outro remédio,senão fazer,novamente,das tripas, coração. Quase se pode dizer ser ele um prodigio,podendo trocar um órgão por outro. Um fenómeno.