quarta-feira, 12 de abril de 2017

MUITO PIEGAS

Eram dois,a uma esquina. O mais alto,bem vestido,tinha um vozeirão de respeito. Pois fica tu sabendo que me há-de sair um dia a sorte grande. É o que te digo. Hei-de comprar sempre o mesmo número. É cá uma teima. O outro,de cabeça pendente,não abria boca. Estaria rezando a todos os santos para atenderem o amigo. Alguma coisa lhe havia de caber. O esperançado não mudava de disco,provavelmente,porque outra coisa de igual importância não lhe acudia. O outro,coitado,mantinha-se mudo.Outros dois,já com largos anos,enfarpelados com vestes de treino,como é moda agora,vinham, num despique animado,descendo a avenida. Estavam ambos com graves dúvidas sobre uma telenovela. Nem se lembravam bem dos títulos,nem dos nomes dos atores principais. Não havia meio de atinarem,contrariando-se mutuamente. A idade também já não ajudava.Depois,projectado numa parede,o cenário de todos os dias,na rua,no café,no emprego. Se não ganhar,será uma vergonha. Eu cá sou capaz de devolver o cartão. Aturar mais isto é que não. O melhor é gastar o meu rico dinheirinho no jogo,talvez na raspadinha.Logo a seguir,em canto recatado,duas comadres conversavam. Ai vizinha,não aguento mais este reumático. Já não sei o que hei-de fazer. Tenho corrido um ror de médicos e de endireitas,e nada. Eu estou na mesma e sou muito mais nova. Veja lá o que me espera ainda. O meu homem está farto de me ouvir gemer. Chega a dizer que não suporta mais. Ainda bem que a comadre é viúva,se não também ouvia das boas. Foi o que me valeu. Que ele,coitado,sofria mais do que eu,pelo menos era o que eu supunha,embora ele fosse muito piegas. Enfim,paz à sua alma,que o corpo,já se sabe,não encontrava cama melhor.

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