"...Toda aquela tarde,uma velha estivera acocorada no chão da sala comum,vestida de negro,com os cabelos brancos sobre os olhos,o xaile esfiado pela cabeça,uma taleiguita de estopa no regaço... Tinha chegado essa manhã da Vacariça;era uma velha pequena,chata de cara,amarelenta,lesta e descalça de pé e perna,como em geral andam as mulheres pobres da Bairrada. Ninguém reparava nela,e quase era certo que também ela não houvesse reparado em ninguém....Logo de manhãzinha ela viera,a pobre velha,por esses côrregos verdes dos pinhais,que a urze borda,e o feto grosso do mato,e a gilbardeira espinhosa,naquele tempo,em Dezembro,toda bordada de bagas escalrlates. Ao aproximar-se da estação,gritou-lhe o guarda brutalmente que se desviasse da linha:ela estacara,medrosa,a taleiga de estopa ao quadril,caído o xaile,e sob o chapéu de feltro chato e o seu lenço negro de viúva,enrolado até à boca,como um toucado tunesino. E titubeante,às recuadelas nos rails,a pobre mulher acenava para o guarda,a lhe explicar que era de fora,não sabia;e que trazia no saco o farnel prò filho-porque o tiozinho não sabe?,o filho dela devia chegar no comboio de Lisboa...Ela entretanto,cada vez mais pequena,azougadita,e sentindo renascer-lhe a alma na alegria desse filho restituído aos seus braços,ela corria ao encontro duns e doutros,confundia o seu vulto entre a gentana,sofria os tropeções dos indiferentes,pedindo informações,chamando o filho e revisando as caras uma a uma....-Eh,tia Rosa!Afirma-se no homem que lhe passou a mão no xaile roto..Sou o Clemente,vim do Brasil ontem à tarde...Eh,pobre velha,aqui me tem outra vez nas nossas terras!...-Mas o meu filho? O meu filho?Então o homem correu-lhe os dois braços à roda do pescoço,olha-a um nstante,apenas um instante.-O seu José,Tia Rosa,o seu José...moreu na viagem.Nem um grito de espanto,um queixume,uma lágrima,nem sequer um único suspiro. Aconchega mais o xaile sobre os ombros,baixa a cabeça trémula e gelada,e pequenina,acocorando-se mais entre o tumulto daquela gente alegre,ei-la caminha a cambalear como uma bêbeda...."
FIALHO DE ALMEIDA
O País Das Uvas
Fragmentos de O Filho
Círculo d Leitores
Fevereiro de 1981
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