quinta-feira, 19 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - DE SOL A SOL

Era um espaço minúsculo,atravancado de fazendas e de fatos em diferentes estados de acabamento. Quase não cabia uma mosca. Mas dava jeito,pois o mestre era rápido a tirar as medidas e fazia apenas uma prova. Fornecia também lojas. Devia ter um exército a trabalhar para ele,no sossego das suas casas. E quase não descansava. Só aos domingos,e mesmo assim era muito bem capaz de os gastar com uns biscates. Estava no seu posto de sol a sol. Dizia ele que era por mor da velhice. Queria ter uma reforma que se visse. Mas se calhar não teve tempo para a gozar,pois era daqueles talhados para morrer no seu banco.Um moiro,dos das primeiras arrancadas. Às vezes,andava muito preocupado,com medo do fisco. Querem-nos levar ainda mais?Tinham prometido que não carregavam nos impostos. Já um homem não podia amealhar,desabafava. Talvez por isso,por mor de uma velhice descansada,era vê-lo a correr para o banco,a depositar o cheque recebido segundos antes.

ALGURES NESTE VALE - A ESTAÇÃO DO ENTRONCAMENTO

Era no verão,por altura dos Santos Populares. Seria bom que o povo tomasse contacto com a arte. E vai daí,fizeram uma exposição ao ar livre,num recinto convidativo,com árvores,com canteiros,num jardim. A um canto,arte abstracta,noutro canto,afastado,arte figurativa.E aconteceu,com frequência,o que era de esperar. Olhem para aquilo. Isto também eu pintava. Borradas,é o que tal coisa é. O meu filho,que anda na escola primária,podia ter aqui os seus desenhos. São muito melhores do que todos estes. Não têm jeito para fazer quadros que a gente entenda,depois,é o que se vê. Tanto tempo,tanta tinta,para sairem coisas destas. Olha a estação do Entroncamento. Era uma tela de grandes dimensões. Até parece que estamos lá. O homem sabe disto. E empurravam-se,todos queriam ficar bem ao pé,para não perderem nada. Sim senhor,isto é que arte. Pensam que a gente não consegue distinguir,mas estão muito enganados. Vejam lá como está tudo no seu lugar. O homem sabe do ofício. As plataformas,os comboios,os passageiros,os vendedores de pevides e de tremoços. E as cores?,cores de um rico dia de sol. Este comprava eu,se tivesse dinheiro. Ficava bem lá na sala. Agora, os outros,lá de trás,nem dados. Que diriam os parentes e os amigos se os vissem lá na sala? Que estávamos malucos de todo.

ALGURES NESTE VALE - NAACERA JÁ ASSIM

Há homens que lhes dá para colecionar damas. Uns,fazem-no pela calada da noite,outros,pela calada do dia,outros ainda,pela calada do dia e da noite. Um certo homem era desta terceira classe,todas as horas lhe serviam. Vivia numa terra,nem grande,nem pequena,uma terra assim-assim. Tinha todo o tempo para as suas meninas e uns tempos muito curtos para a sua esposa. Esta andava muito triste,o que não era para menos,mas não havia nada a fazer,ele nascera já assim. Era também um homem de caprichos. Coisa que lhe apetecesse,desde que não fosse a lua ou o sol,ou os seus muitos irmãos ou irmãs,tanto faz,era coisa possuída ou feita. E um dia,há sempre um dia,pensou em instalar a favorita mesmo em frente da legítima. Nessa mesma hora,ficou tudo arrumado. Já se podiam espreitar as duas. A esposa,coitada,à socapa,por detrás das cortinas,a outra,às claras,pavoneando-se. A ousadia,o capricho,ou lá o que se queira chamar,pode ter tido desenvolvimento,não se sabe. Era homem para isso e muito mais. O ideal seria que as duas casas comunicassem,ficando ele com a chave e a tranca. Ter-se-ia atrevido?

ALGURES NESTE VALE - DEVIAM SER MILHARES OU MILHÕES

Foram apenas quatro,ao todo,as que se dignaram mostrar,em média,uma por mês. Foi muito pouco,quase nada,mas não estiveram para mais. Deviam ser milhares,talvez milhões,as cobras daquele imenso e fresquinho vale. A primeira,coitada,já estava de partida para outro mundo,para o descanso eterno. Logo o tractor lhe havia de passar por cima. Torcia-se,ali naquele chão que ela tão bem conhecia,mas quase já sem alma. A segunda fora apanhada de surpresa. Já a gente não pode estar ao sol,teria pensado ela. Era o que estava fazendo no talude daquele apertado caminho de terra batida. Ainda levantou a cabeça, toda direita,olhem que eu estou aqui,mas só isso,que o jipe sumira-se,para não mais o ver. Uma aparição fugidia,não mais. A terceira estaria muito longe de pensar que iria ter aquele encontro. A noite fechara-se e ela lá se preparava para ir à sua vida. Já estaria atrasada para o jantar. E quem lhe havia de aparecer numa altura daquelas? Nem mais,nem menos,do que uma fila de gente a palmilhar aquele caminho tão seu conhecido. Eram muitos para ela. E assim,era melhor voltar para casa,no fresquinho capim da margem do rio. E foi o que fez,ela muito assustada,e eles ainda mais. A quarta não foi bem uma cobra,foi sim a sua imagem,pois dela só se viu o rasto,ali bem desenhado na tijoleira vermelha do alpendre da casa. O rasto terminava à porta. Devia ter entrado,pois havia apenas um. Estaria lá dentro, à espera. E naquele fim de tarde e naquela noite, não houve canto que ficasse por vasculhar, vezes sem conta,mas a cobra desaparecera,como por encanto.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - A REBOQUE

O homem metia dó. Embora não fosse velho,longe disso,via-se bem que não era carruagem para aquela locomotiva. É que o seu cão não era um qualquer. Dava-lhe quase pelo peito e estaria na sua plena força. Aquela manhã de domingo estava de sol,mas um bocado fresca. Mais uma razão para o animalzinho querer sair de casa,pois lá dentro abafava-se. Além disso,tinha as suas necessidades. O dono que tivesse juízo. Teria andado na rambóia,deitara-se tarde,mas ele não queria saber de desgraças. Tinham de ir dar uma volta. Ordens são para se cumprirem. Levantara-se a custo,passara rapidamente pela casa de banho e enfarpelara-se ligeiramente,pois sabia muito bem o que o esperava. E assim,foi visto em calções,com camisa de manga curta,de trela na mão,a reboque do companheiro. O que ele tossia,o que ele tropeçava,o que ele cuspia. Algumas vezes esteve em risco de se estatelar. Era uma dor de alma. Mas o monstro é que não estava para compaixões. Quem quer um cão assim tem de estar à altura. Este dono não se importaria,porém,de fazer figuras tristes. Lá teria as suas compensações. Em primeiro lugar,dar-lhe-ia uma certa classe o exibir um tal adorno. Depois,livrá-lo-ia de assaltos,para os quais não estaria preparado. Não lhe custaria,pois,fazer alguns sacrifícios,como o de sair cedo da cama em manhãs de domingo,fizesse sol ou não.

ALGURES NESTE VALE - UM ETERNO RECOMEÇO

Há quem goste de começos,talvez para quebrar a monotonia da vida,quando instalada,em marcha de rotina. Lá terão as suas razões,de que eles são parte. E uma delas está bem á vista,e é a de verem a vida como um eterno recomeço. Pois não se morre,de algum modo,todos os dias,no sono? E a vida freme,a cada momento,em múltiplas transformações,como que renovando-se,num ser qualquer. Depois,ou ao mesmo tempo,a natureza envolvente está ali sempre,bem próximo,a dar mostras de que quer continuar. E é o Sol que não se esquece da sua função,nascendo todos os dias,num teimoso recomeçar. E é a Primavera,portadora de promessas,que, persistentemente,as vem trazer. E é ver as plantas,erva,arbusto,árvore,numa perpétua renovação,mesmo sem os cuidados do homem. Elas lá nascem,lá crescem,lá se desenvolvem,lá passam o testemunho,tudo muito naturalmente. A vida nelas é um contínuo mudar,mudar de cara. E mudar de cara é o que se passa com muitos,com todos,à semelhança do poeta,sem se deixar de ser,num eterno recomeço,a partir de si,de cada um. Não é de estranhar,pois,que haja quem diga que goste de começos,assumindo,afinal,a realidade de todos,que,a cada momento,de algum modo,vão renascendo.

ALGURES NESTE VALE - ENCANTADO

O homem acordara bem disposto. Estava um dia de sol. Esqueceu dívidas suas e de outros,esqueceu a tristeza que vai por esse mundo e apeteceu-lhe vadiar. E lá foi,não para muito longe,que as pernas já lhe iam pesando. De resto,ele estava convencido de que,tirando umas certas pequenas diferenças,esse mundo é todo igual. Tomou um transporte público,e ,quase não tinha aquecido o lugar,apanhou com um muito obrigado humilde,só por ter facilitado a saída do parceiro do lado. Começava bem a digressão. Lá onde desembarcou,eram só manifestações de lazer,a imitá-lo,ou ele a imitá-los,tanto faz. Uns andavam,para lá e para cá,tal como ele,uns saltavam,uns corriam,uns pedalavam,uns pescavam,uns torravam. Também voavam gaivotas e mourejavam duas ou três famílias de gatos. A estes,comida não faltava,que alguém deles cuidava,que bem se via. Mas um,naquela altura,estaria para outra iguaria virado,pois de teimosa perseguição uma gaivota se livrou. Tantos eram os que lá se entretinham,que na bonita igreja apenas se encontrava uma alma. Mas esta enchia-a toda.Era voz que encantaria o próprio céu. Bem precisaria este de tal encantamento. É que lá fora,um estranho grupo actuava. Estavam ali por causa de um morto,mas eles bem vivos se mostravam,bem vivos e bem dispostos. Ele também viera de lá encantado. E mais encantado ficou,quando, a uma inquirição sua , uma senhora pronta e alegremente o informou. Parecia estar à espera de que alguém dela precisasse. Correra-lhe bem,pois,a digressão desse dia. Era para,mais uma vez,agradecer a Quem dos dias se encarrega.

terça-feira, 17 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - RIDÍCULO

Fizera-se velho bem cedo. Podia dizer-se,até,que nunca fora adolescente,tendo passado diretamente de criança a adulto. E ali estavam aqueles procedimentos que não tinham outra explicação se não a falta de uma estação importante,decisiva,no seu normal desenvolvimento.Usara chapéu durante muitos anos. Achava ele que assim é que estava bem,pois dava-lhe um ar mais de acordo com o que lhe ia na cabeça. Chegou a levá-lo para a praia,pondo-o mesmo no toldo ou na barraca. Ridículo,não era?Mas não estava só. Fora o caso de alguém que assim se compunha,numa altura em que ele já se aliviara um tanto. Refinara este. Mas não se tratava só de chapéu. Também vinha para a beira-mar de fato completo,de cor escura,e sobraçando pasta. Enquanto a mulher e a filha faziam a sua vida,de companhia com outros,ele embrenhava-se em leituras sérias,naquele preparo de fazer lembrar um cangalheiro.A mulher também tinha a sua originalidade. Uns dias antes do regresso,percorria as aldeias próximas,donde trazia meia dúzia de galináceos,a preços muito regateados. Dizia ela que era para dar para a viagem. Vinham no porta-bagagens,em cima umas das outras. Algumas chegariam meio mortas,reduzindo,felizmente,o alarido que o conjunto,mesmo assim,devia fazer,quando entrasse no prédio de luxo onde viviam. Eram dos tais que também poupavam no farelo.

ALGURES NESTE VALE- JEITO HUMILDE

Estava,naquela altura,livre de perigos como os de há centenas de anos,a vetusta abadia. De onde em onde,naquele passado longínquo,lá vinham eles,homens mais do norte,tentar reduzi-la a cinzas. Algumas vezes o conseguiram,que a história assim o relata. A tarefa não se mostrava nada fácil. Em primeiro lugar,tinham a barrar-lhes a caminhada uma alta e grossa muralha,que ainda lá se encontra,do tempo dos romanos. Atestava esta a irrequietude dessa brava gente.Transposta esta,deparava-se-lhes,a pouca distância,a garganta de um rio. Admirava que a tivessem erguido tão perto de semelhante inimigo. Só uma grande fé o poderá explicar. Quase à vista dele,voltavam a pôr pedra sobre pedra. Mas seria sol de pouca dura. Nada,porém,os impedia de recomeçar. E lançavam-se,de novo,à empresa,talvez com redobrada determinação,esperando que dessa vez fosse para sempre. Lá se encontra hoje,apontando,porventura mais tranquilamente,para o céu,não tão magestática como outras suas irmãs,mas em jeito humilde,que também atinge as alturas. Muito perto,estende-se um parque que a liga ao rio. Teria sido por aquele chão que se tinham feito as investidas de variado sucesso. Naquela altura,eram gritos de crianças,nas suas brincadeiras,que se ouviam.

ALGURES NESTE VALE - O VIL METAL

Eram atraídos como formigas ao açúcar. Ali havia dinheiro,mais do que noutros cantos,de maneira que as"formiguinhas" não demoraram a aparecer. Tinham passado palavra,ou nem isso,que o cheiro guiava-as. O dono do cofre exultava. Mexera-se,usara as suas influências,e ali estava o prémio. Pode dizer-se que era senhor de um estado dentro dum muito maior,mas este sem cheta. Sentia-se o mestre dos mestres,rodeado de quase uma dúzia de jovens promissores. Foi,porém,sol de pouca dura.Por uma razão desconhecida,a fonte secou. Afinal,as "formiguinhas" tinham vindo ao engano. O mestre era de fibra e não desanimou. Convocou os pupilos e fez um apelo à sua generosidade de jovens. A fonte secara,sem ele contar,mas esperava que em breve voltasse ao que era antes. Esperava deles resistência às más horas e queria vê-los com disposição para continuar ali. Não seria por falta do vil metal que o fossem deixar. Agora é que ele ia ver quem eram os fortes. O discurso fora patético,dirigido ao desinteresse,à abnegação,à entrega inteira a uma causa nobre,a da ciência. Ouviram-no todos com muita atenção e atreveu-se um a dizer de sua justiça. Apreciavam muito a sua confiança,mas havia uma questão muito importante,que estava a ser esquecida. É que,em primeiro lugar,está o viver,e para isso precisamos do que aqui deixou de haver. Não é o dinheiro essencial,mas sem ele nada feito. Depois de o voltar a ter,então filosafaremos. Não foi bem assim,mas para o que é serve muito bem. E ali terminou a sessão,indo cada um para seu poiso,pensar. A pouco e pouco,porque os prognósticos não davam sintomas de melhoria breve,foram indo à sua vida. Fora uma pena aquela debandada,porque o barco era bonito e o comandante ilustre e simpático. O primeiro a dizer adeus parece ter sido o da sentença consagrada. Lá teria as suas fortes razões,maiores do que as dos out

ALGURES NESTE VALE - UMA SANGRIA

Não tinha havido invasão de gente bárbara,não tinha havido guerra,mas eles aí vinham em magote,homens,mulheres,crianças,pejando caminhos,amontoando-se em salas de espera e nas plataformas das estações dos comboios. O que os movia? Era a fome,simplesmente. Não tinham nada,a não ser a força dos seus braços e iam vendê-la. Nas suas terras, não havia quem deles precisasse,mas lá mais para baixo,onde se estendiam searas a perder de vista, e vinhas e olivais de muitos milhares de pés,contavam com eles e já estavam à sua espera. Eram menos exigentes,sendo ,assim, os preferidos. É a luta pela vida. Ficavam ainda muito agradecidos. Lá se arranjavam como podiam. O que era preciso é que no fim,quando do regresso,sobrasse alguma coisa de jeito,de modo a ampará-los no resto do ano. A palavra de ordem seria,pois, poupar,mesmo em coisas essenciais. Andaram nisto anos e anos. Era a ignorância,o alheamento. Não lhes ocorria outra saída. Mas um dia,alguém deu aviso. Olhem que há para aí uma maneira de a gente se arranjar melhor. Dizem que em França e noutros países há para lá muito trabalho e ganha-se mais. Vamos lá experimentar. Foram,gostaram e foi uma sangria. As condições,no começo,não foram lá grande coisa,mas a isso estavam eles bem acostumados. Mas melhoraram com o tempo. Assim,valia a pena,diziam os coitados,com alguma mágoa. Sim,porque aquilo não era a sua santa terrinha. Havia que ter paciência,que era o que não lhes faltava. Voltariam um dia,de vez,quando amealhassem coisa que se visse.

ALGURES NESTE VALE - HORAS SEM FIM

O barco naufragara,na viagem de regresso de grande e perigosa aventura. Só ele se salvara,mas deixara lá,nas águas com sal de muitas lágrimas,uma perna e um braço. Não se sabe como está ele ainda vivo,passados que foram tantos anos. Até já se lhes perdeu o conto. Não lhe tem valido,para seu sustento,qualquer tensa,por minguada que fosse. Teria de ser poeta,como o vizinho do canto. Assim,tivera de se desembaraçar,escolhendo um local estratégico,a entrada da memória de um épico empreendimento. Ali permanece horas sem fim. Sentado num degrau,à esquerda ou à direita,tanto faz,mostra as ausências,esperando que um copo translúcido se vá enchendo. Assim tem aturado. É isto mais do que justo,pelo muito que ele, e tantos como ele, fizeram. Mas,atendendo,pelo menos,à solenidade do lugar,já se podiam ter lembrado dele,arranjando-lhe um poiso mais confortável.

ALGURES NESTE VALE - ERA VERDADE

Aquelas terras não lhes pertenciam. Eram foros antigos. Teria sido transação sob palavra ou com o fazer de um documento que se sumira. Estavam agora ali irreconhecíveis. O trabalho de gerações tinha feito o milagre. Além do chão,tornado úbere,havia casas e poços. Certo dia,um dos herdeiros achou que aquilo não podia continuar assim Tinham de sair de lá,que as terras eram dele. E era verdade,à face da lei. Não queriam acreditar os coitados. Então o que vai ser da gente? Para onde iremos morar? E quem nos paga os melhoramentos que aqui fizemos? Se nos querem tirar daqui,há-de ser sobre os nossos corpos. Ainda tiveram ilusões. Aquilo era uma muralha que metia respeito. À frente,dispunham-se as mulheres com os filhos,à laia de tropa de choque. Atrás,ficaram os homens,para os reforços. Foi uma luta desigual. No chão,que tinha sido a cama de muita semente,jaziam, estendidos ,alguns para sempre. Só que destes apenas nasceram ódios.

ALGURES NESTE VALE - ROLA VELHA

Era ridículo e comovia.Estavam os dois de pé,a uma esquina de rua movimentada. Ela,como sempre,muito gorda,mal trajada e mal penteada. Ele,uma sombra do que fora,com aspeto de servente de obras em férias,talvez forçadas. Há que tempos se não viam. Eram marido e mulher. Ele abalara,em dia de grande desespero,e ela para ali ficara com a carga toda,uma carga de filhos e de netos. Os olhos que ela lhe deitava,só visto. Deles, soltar-se-iam feixes de raios de altíssimo poder sedutor. Não seriam bem dela,mas da jovem que tinha sido. Afinal,ainda vibrava. Estaria pronta para perdoar e recomeçar,assim ele quisesse. Mas toda aquela figura dele,curvada,de chama mortiça,parecia não dar qualquer esperança. Aquele coração já seria como uma pedra,insensível a mavios de rola e muito menos de rola velha. Era ridículo e comovia.

ALGURES NESTE VALE - FEIRA DA LADRA

Tempos atrás,o pacato jardim fora percorrido por uns sujeitos munidos de tintas,de pincéis e de réguas. Que brincadeira será esta?,interrogaram-se alguns pardais, que andavam por ali,na boa paz. A pouco e pouco,aqueles arruamentos foram-se enchendo de rectângulos amarelos. Ainda numeraram alguns,mas,ou porque se acabasse a tinta,ou porque houvera grande esforço,desistiram. Aquilo,na altura,ficou-se por ali. Para que seria um traçado daqueles? Fazia lembrar um jogo de crianças. Talvez fosse para isso,pensaram,e qualquer dia teriam ali grande festa. Pois muito se enganaram. Ideias de gente simples. Certo domingo,logo de manhazinha,ainda mal o sol despontara,deu-se uma invasão. Homens e mulheres,com sacos e saquetas,com malas e maletas,ocuparam aqueles rectângulos. E daqueles baús,saíram os mais diversos e disparatados objectos,a maior parte muito velhos e outros cheirando a mofo. Paulatinamente,seguiu-se outra invasão. Eram os curiosos ou os interessados em tais bugigangas. Enfim,um desassossego. Olhem,a nossa vida,lastimavam-se os pobrezinhos. Então,isto é para durar? Muitos voaram para outras paragens,que aquilo não podiam suportar. Só regressaram,quando foram avisados por uns mais velhos,de ouvido mais duro,que vieram a saber que aqueles ajuntamentos só se fariam no último domingo de cada mês. Era um dia de sacrifício,apenas. Gostavam muito daquele jardim,mesmo ali ao pé do grande rio,e custar-lhes-ia deixá-lo. Que outra desdita não os afectasse.

ALGURES NESTE VALE - HORAS À JANELA

Do seu andar,via-se uma ampla e variada paiasagem,que não a atrairia por já sobejamente a conhecer. Estaria mais interessada no primeiro plano. A poucos metros,lá em baixo,desenhava-se uma espécie de fronteira. Para além dela,perfilavam-se vários prédios com locatárias especiais. Não teria necessidade de binóculo,mas talvez o tivesse usado. O movimento de entradas e de saídas não parava,dia e noite. Teria sido apanhada de surpresa. Não o esperaria,mas o espectáculo ter-lhe-ia agradado. Passaria horas à janela. As observações lá do alto não a teriam satisfeito. Teria querido ver mais de perto,o que era simples. Bastava abrir uma porta. Depois,eram apenas uns passos em frente ou para o lado,direito ou esquerdo,tanto fazia,e subir meia dúzia de degraus. Deve ter feito uma incursão de reconhecimento. As surtidas ter-se-iam repetido e prolongado,passando a aborrecer o regresso a casa. Finalmente,optou.

ALGURES NESTE VALE - MAIS UNS PATACOS

Eu bem sei o que ele quer . Vai ver,vai sondar,e se aquilo lhe convier manda recado a dizer que arrangem outro. Mas comigo não brinca. Pois não o deixo ir. Era o que faltava. Quem manda aqui sou eu. Dá-se-lhe um emprego,que podia ser para um mais necessitado,e,depois,é isto. Pelo menos,foi o que constou. Recebeu uma informação favorável do diretor da casa onde ele trabalhava,depois outra e ainda mais outra,e as três foram rejeitadas. Já era teima,de ambos os lados. Uma quarta não o apanhou,pois tinha ido dar uma volta. E o seu substituto disse logo que sim. Que mal causava ao serviço o rapaz estar três meses ausente,ainda com a vantagem de não lhe pagarem,pois ia com licença sem vencimento? Quando veio lá da volta e soube do que se tinha passado,foi um nunca mais acabar de ameaças. E o pobre do moço,lá longe,recebe,muito perto do regresso,uma carta. Olha que ele está decidido a deixar-te na rua. Se apareceres cá,um só dia que seja,depois da licença expirar,encontras a porta fechada. E ele teve de pôr pernas ao caminho,ainda febril,por infeção de um espinho mau,pois ninguém gosta de ficar na rua. O pobre do moço,afinal,tinha ido apenas ganhar mais uns patacos,mas ele de patacos não queria saber.

ALGURES NESTE VALE - O SOL

Naquele fim de tarde,parecera-lhe maior o Sol,quase a esconder-se,ou ir para a caminha,lá longe. Muito lentamente sumira-se,como era seu hábito,deixando um rasto que perdurou. Lembrara-lhe alguém que o desejava perseguir,com ele sempre à vista. Se tivesse muito dinheiro,havia de tentar. E também um outro que ia para um miradouro para dele se despedir. Teria receio de o não ver mais? Talvez pensasse que o seu regresso dependeria do seu adeus. Pois naquele fim de tarde,tirando ele,mais ninguém se estava interessando ali pelo Sol. E eram muitas as que lá se encontravam. Tratar-se-ia de uma coisa banal,farta de se repetir. Não valeria a pena um simples olhar. No outro dia,lá o teriam novamente. Até quando? Nem ele saberá,coitado,ali sujeito àquele destino.

ALGURES NESTE VALE - ATÉ CANTAVA

O fragor daquela nascente queria dizer alguma coisa de muito bom sobre o que se estava passando em demais lugares. Ainda há bem pouco tempo era só um tímido fio que dela brotava,embora isso quase apontasse para um milagre,tantos tinham sido os meses em que não viera do céu água que se visse. Apenas uns míseros borrifos,ali e acolá. Mas naquela altura,não. Podia dizer-se que até cantava,e forte,pois se ouvia a sua voz ao longe. E era ver aquela água correndo por caleiras,dia e noite,sem descanso. Estava ali a fazer muita falta uma albufeira. Queria dizer que o manancial que lhe dava vida se revitalizara. Queria dizer que a terra em seu redor ,e ,porventura,de afastados sítios,que o sitema de vasos comunicantes é uma realidade,se saturara,dispensando água que estava a mais,e que seria muita. Tendo água caído em abundância por muitas bandas,não seria muito ousado pensar que coisa similar estivesse ocorrendo nelas. E que muitas nascentes tivessem readquirido a sua função,alimentando ribeiros e estes rios. Parecia ser este regresso a uma vida plena,depois de tanto tempo de angústia e de perdas vultosas,um caso para ser noticiado com júbilo. Mas não,casos destes pouco interessavam.

ALGURES NESTE VALE - SÓ COM SETE

Não resta dúvida que isto não vai ser nada fácil. A senhora era muito republicana,mas não se importava nada de ser marquesa, condessa,uma coisa assim,com os respetivos apetrechos,claro. Calhava-lhe mesmo bem,agora que já ia no declinar da vida. Não havia de calhar,e não só a ela? Ah, este bichinho lá de dentro sempre a sonhar com grandezas. Era o caso,com os devidos descontos,daquela outra senhora que só aceitaria um certo lugar se lhe dessem seis criados,seis. Ela,coitada,com a categoria de servente já há uns bons anos,sem possibilidade de ter um sequer,visto o marido estar também como ela. A pedir,ou a exigir,ao menos,que seja coisa de jeito. Se não,o que se lhe haveria de chamar? Sim,que ou há moralidade ou comem todos. Sou republicana,pois então,com muita honra e pouco proveito,mas se vir que doutro modo me arranjo melhor não hesitarei. Então,não vai com cinco? Nem pensar nisso. Só com seis. Mas pensando melhor,ficaria mais bem servida com sete. Só com sete,está dito.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - SEMPRE SÓ

Naquela manhã,apeteceu-lhe ir até à beira-rio. A temperatura amena convidava a desentorpecer as pernas. No céu,uma barreira de nuvens escondia o sol. A companhia era escassa. Num carro,o condutor punha-se a par das últimas da bola,e uma cana de pesca estava montada na ponta do esporão. Sentou-se,a olhar para as águas castanhas que vinham bater mansamente na muralha. O barco da carreira lá ia em mais uma viagem. As gaivotas estavam recolhidas. Um homem aproximou-se e sentou-se. Trazia a camisa aberta e sobraçava um jornal. Deslocava-se com dificuldade. A cara não lhe era estranha. Já o vira algumas vezes,sempre só. Então,anda também no seu giro? Tinha dificuldade em se exprimir,mas lá se percebia. Estava reformado e o jornal era para regressar ao quiosque ,depois de o ler. De súbito,pôs uma pergunta. Quer que lhe faça alguma coisa? A resposta tardou. Interpretando, ou nã,o o silêncio,vá-se lá saber o que lhe ia na cabeça,como um consentimento,chegou-se mais e a sua mão,onde luzia uma aliança,avançou,pairando. Não se lhe deu tempo para ele a pousar. Já se estava fazendo tarde para ir pelas sopas. Ele levantou-se também, e lá foi devolver o jornal,caminhando,ao longo de largo passeio,muito lentamente,de modo trôpego,olhando para o chão.

ALGURES NESTE VALE - MESTRE-ESCOLA

Fora uma longa vida de trabalhos,à vista de um punhado de gente,que fazia o mesmo. De resto,é o que a maioria tem de fazer,trabalhar. Há uns que escapam a esta sujeição,mas isso são contos largos,que não são para aqui chamados. Pois o tal da longa vida de trabalhos,trabalhava por gosto. Viera assim. E desses trabalhos foram dadas contas ,paulatinamente,ali à vista de todos. Naturalmente que ele,trabalhando,queria justificar o dinheiro que ganhava,que,em boa verdade, não era muito. Lá ia chegando para o essencial. A pouco mais aspirava. Ma,na generalidade, não foi assim entendido. Eu bem sei o que tu queres. Queres passar à minha frente,queres tirar-me o lugar,queres ser melhor do que eu e outros quereres da mesma família. O resultado de todos estes quereres foi o silêncio,o ignorar,o passar de largo,o impedir,o criticar,o gozar,sobretudo o gozar. Olha o homem de uma nota só. Nem vê que por cá faz muito sol.Para que é que aquilo serve? Afinal,o que aí está já toda a gente o sabe. Nem ata,nem desata. Olha que o meu chefe falou-me há dias nos teus trabalhinhos. Então só agora é que isto aparece,quatro anos depois do acontecimento? Não lhe basta o que ganha num sítio,o atrevido, e não se sabe mais o quê. O que lhe valeu foi ter sido mestre-escola. Aqui ninguém entra,é terreno meu,só com minha autorização. Só uma palavrinha de incentivo ,mas esta de um oficial de outro ofício- vai no bom caminho. E,claro,uma palavrinha de"elogio",quando deu conta dos últimos trabalhinhos,quando da despedida,quando quase "morto". E assim se vai perder um tão esperançoso trabalhador.

ALGURES NESTE VALE - AS CASTANHAS

Praticavam o chamado venha a nós. Não seriam os únicos,nem seriam os últimos,pelo andar da carruagem. Mas eram especiais. Usavam métodos,ou técnicas,como se lhes queira chamar,lá muito deles. Quando partiam para férias,nunca se esqueciam de levar uma rima de sacos de plástico na mala do carro. Pode dizer-se mesmo que lhes reservavam lugar nobre. É que eles iriam prestar-lhes um grande serviço. Para ser mais claro,iriam permitir-lhes reduzir ou até anular a despesa com a estadia. De vez em quando,lá partiam eles em digressão,por aqui,por ali. Iam de olhos bem abertos,inspecionando a paisagem,como avaliadores experimentados. E quando as condições se proporcionavam,os sacos entravam em ação. Tudo o que viesse à rede era peixe. Mas tinham as suas preferências,cabendo o primeiro lugar às castanhas,seguindo-se as maçãs e as uvas. É claro que no regresso,não era só a mala a contemplada. O carro tinha,porém,muito espaço livre,que gostosamente se deixava ocupar. Talvez fosse esta colheita o melhor das suas férias.

ALGURES NESTE VALE - ORIOLA

Junto a Portel. Por ali tinham andado os romanos e cheirou-lhes a ouro. Muito sabia aquela gente. Vinha dos lados de Alvito. Montados e mais montados. Terra colinar,escalavrada,de tons avermelhados. De súbito,numa baixa,surge um aglomerado de casas. Parecia uma enorme ave pousada,de plumagem branca. O sol batia nas casas,que resplandeciam. Os olhos,saturados de vermelho,a custo suportaram aquela alvura. Uma miragem,não podia ser outra coisa.

ALGURES NESTE VALE - PARA ONDE IREMOS ?

Mais um incêndio em casa velha,casa prestes a desaparecer. Mas enquanto não leva sumiço,lá vai sendo resguardo de algumas famílias. Pouco passava do meio-dia,de um dia 23 de Dezembro. Vieram os bombeiros e o trânsito foi condicionado,que a artéria é de intenso movimento. Àquela hora de um dia de trabalho,só lá se encontrava um casal,que veio para a rua dar largas ao seu desconsolo. E agora,dizia ela,levando as mãos à cabeça,para onde iremos? Para a apoquentar ainda mais,o seu cãozinho ,muito perturbado,não havia meio de tranquilizar. A jovem lá acalmou. As coisas haviam de se recompor. Os bombeiros apagariam o fogo,e quando tudo aquilo serenasse,voltariam para a sua casinha. O buraco no telhado,que, entretanto,se fizera,viria a ser tapado,por causa das intempéries. Para a rua é que eles não quereriam ir viver. Teriam,porém,de manter,por algum tempo,as janelas bem abertas,para apressar a secagem,pois os bombeiros não tinham poupado água para dar conta dos focos das chamas. Como era de prever,houve regresso ao doce lar no mesmo dia. Dava disso clara indicação uma janela iluminada. Para onde é que iriam?

ALGURES NESTE VALE - SAQUITO RECHEADO

Um pardal desloca-se dando uns saltinhos muito rápidos,parecendo dispor de potentes molas nos seus pezitos. E nos seus voos,ao mínimo sobressalto,não se vê usar as asas. Fa-lo-á ainda como de saltitos,agora maiores,se tratasse. Pois aquela velhota muito se lhe assemelha no seu modo de girar. É claro que não o faz pulando. Dá uns passinhos muito rápidos,muito rasteirinhos. Julgar-se-ia impossível que um corpo tão mirradinho conseguisse assim progredir. Mas avança,que é bem visível. Ainda há pouco estava lá longe e já agora se encontra muito próximo,como se tivesse corrido ou voado. Parece ser uma pobre de pedir,ainda que nunca fosse vista de mão estendida. Mas que ela vai sempre de saquito recheado,não restam dúvidas. Se é de ofertas de comida,têm-lhe dado elas energias bastantes para o seu peregrinar de anos,mantendo inalterável a maneira de caminhar. Voará,quando não estão a vê-la? Talvez um dia o faça,quem sabe? Pelo menos,alguns pardais já a consideram da família. Foi o que há dias deram a entender. Estavam dois ou três saltitando no murete de um laguinho,há procura de alguma coisa de comer,quando surge a velhota,no seu regresso a casa. Nem se mexeram,ao contrário do que acontece à aproximação de um qualquer,criança mesmo. Continuaram,calmamente,na sua tarefa,talvez desejando-lhe um bom dia e uma boa refeição.

ALGURES NESTE VALE - SAL DA SUA VIDA

O frio já se estava fazendo sentir lá na terra. A maioria tinha de o suportar,como acontecera,alás,sempre,pois não lhes acudia outro remédio. Alguns até gostariam dele,para enrijar. Mas havia uns,uma meia dúzia,se tanto,mal começavam a esfregar as mãos para aquecerem ou terem necessidade de braseira,tratavam de arranjar as coisas para mudarem de poiso,o que faziam o mais depressa que podiam. De início,a mudança de ares reconfortava-os,mas, escasso tempo volvido,um progressivo mal estar envadia-os. Talvez fossem saudades do chão lá da santa terrinha. A causa era,porém ,muito outra,uma causa muito especial. É que lá,nessa outra terra,quase ninguém os conhecia,sendo tratados como uns quaisquer,o que não podiam suportar por muito tempo. Dessa maneira,maneira anónima,não valia a pena viver. Era como uma morte,uma morte sem glória. E,assim,mal os ares lá da santa terrinha se punham aceitáveis,apressavam o regresso,para voltar a receber os salamaleques devidos,o sal da sua vida.

ALGURES NESTE VALE - LIBERTAÇÃO

Aquilo alastrou como fogo em mato seco, de anos incontáveis,lá mesmo do início da arrancada. Nem era de esperar outra coisa,ou melhor,era de uma coisa dessas que se estaria à espera,de uma espera quase sem uma pontinha de esperança. É que se falava de libertação,e libertos é que eles nunca se tinham sentido,nem saberiam o que isso era. Só sabiam é que tinham sido sempre escravos,como já tinham sido os seus pais,os seus avós,todos os avós lá de muito de trás. Ignorantes de muita coisa,só conheciam uma espécie de libertação,que era a libertação de tanta carência em que tinham vivido,eles e os seus,lá de todos os de trás. Só tinham conhecido uma vida,uma vida de submissão,sempre sujeitos a este,e àquele,o que calhava,às suas vontades,aos seus desejos,aos seus prazeres,nos quais se podiam incluir as suas próprias e miseráveis vidas. Vidas em que nunca tinha surgido,e muito menos brilhado,essa palavra mágica, libertação. Não admirava,pois,que essa palavra boa passasse de boca em boca,vencendo obstáculos de toda a odem,se derramasse por vales e montes,chegasse a todos os cantos,os mais escondidos. Quem é que lá haveria que não gostasse de ser liberto? Não haveria entre eles,essa imensa pobre gente,um sequer que recusasse. Não era de esperar outra coisa.

ALGURES NESTE VALE - NEM O REI

Não é tanto o que dizem,mas mais como o dizem. É o ar que põem,é a voz que engrossa,que se doutoriza,é o peito que salienta. E,depois,às vezes,não vem nada a propósito. É ali metido à força. Olhe que isto fica só aqui entre nós,como de segredo de estado se tratasse. E levou o dedo aos lábios grossos. Já reparou bem na minha cabeça,na forma dela,na cabeleira que a coroa? Não lhe lembra tudo isto alguém? É isso mesmo,sem tirar nem pôr. É o rei. Pois venho mesmo em linha reta dele,embora não pareça,um Zé Ninguém,que anda para aqui aos baldões. Coisas que acontecem. Pois é como lhe digo. Aqui enfiado nesta casota,onde mal eu caibo,quem diria que eu tenho lá na terra um casarão de se lhe tirar o chepéu? Só quartos,são mais de vinte. E as salas? Aquilo não são salas,são salões. Querendo,dava lá festas. Nem o rei,que chegou a morar lá perto,tinha um palácio assim. Coitados do pianista e do violoncelista,duas estrelas muito brilhantes. Mas ali,naquela altura,pareciam dois planetas despromovidos. Quase ninguém lhes ligara. Só a menina da receção estava ali para os atender. Ele conhecia muito bem essa casa,oh se conhecia. Ainda há dias lá brilhara,mas não com notas. Estão a ver a categoria deste professor? Que um professor como deve ser deve também sair de uma aula sua a saber mais. Pois era o que lhe acontecia sempre ,quando andava por lá a iluminar o mundo. Não era de esperar,de facto, outra coisa de uma tal sumidade. Oh mas isso não é nada. O meu filho,ou o meu neto,tanto faz,não é ele que vai a casa do professor de música,mas sim este que vai lá à nossa casa. E não é um professor qualquer,não. É um dos melhores,talvez mesmo o melhor deles todos. Incomodar-se o meu filho,ou o meu neto,tanto faz,era o que faltava. Olhe que não é bem asssim. Eu também lá estava,e sei o que digo. Foi até por meu intermédio que ele lá se deslocou. Eu é que sei o que ele disse,então não havia de saber? Mas os outros acabaram por não saber o que ele dissera,por esta via contestatária. O meu filho aceitou o lugar,mas só quando satisfizeram todas as suas exigências. Era pegar ou largar. Com quem eles julgavam que estavam a lidar? Têm a quem sair todos os meus filhos,mas sobretudo ao avô,que não chegou ao topo,mas bem o merecia. Era um génio. Agora,os filhos deles,os meus netos,não queiram saber. Está-me cá a parecer que o génio do bisavô passou a morar neles.

ALGURES NESTE VALE - MARCADO A FOGO

Os anos que tinham passado,uma eternidade,mas a amarga lembrança perdurava. Fora marcada a fogo. Era um restaurante familiar,modesto, não muito longe da praia. Marido e mulher geriam-no,dois jovens muito magrinhos,muito pálidos,de cara muito apreeensiva. E as crianças,duas,a brincar por ali,muito alegres. Naquele ano,aquilo não estava nada bem. Talvez do tempo,que o verão era só de nome,talvez da crise,essa teimosa,que gosta de ver as pessoas atrapalhadas,sempre a deitar contas à vida. As contas que ele teria feito. Não cortes tão grosso,que assim perdemos dinheiro. Uma dose de arroz chega muito bem. E do tomate,só uma rodelinha,assim mesmo. E os clientes que não havia meio de virem. Ele quase não largava a porta a ver se vinha gente. Como é que ele se iria arranjar para pagar a renda? Era só subi-la,subi-la,não queriam saber de desgraças. Era ele que mais dó metia,era ele o chefe da família,e ainda tão novo. As crianças a precisarem disto e daquilo e a televisão sempre a impingir. Queria,também,ela lá saber de desgraças. E vá de dar histórias cor de rosa,para adormecer,para anestesiar,para esquecer,para impingir.

domingo, 15 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - O MESMO DISCO

O trabalho arrastava-se,pelo que dava ocasião a alguma conversa. Mas por onde quer que se começasse,era certo e sabido que se acabava por esbarrar nas suas vidas. Então senhor Joaquim, tem ido muitas vezes à cidade? Mas que pergunta. Que ia eu lá fazer? O que há aqui na terra já me chega. As coisas lá não são mais baratas. Não é disso que se trata. Se tem lá ido passear,ver as vistas? Que me interessa a mim isso? Não ficaria mais rico,antes pelo contrário. O dinheiro não me sobeja para luxos. As poucas vezes que por lá andei,foi por necessidade. Na primeira,por causa das sortes. Mas essa já lá vai há um ror de tempo,e dela pouco me lembro. Depois,foram algumas doenças. Tive de ir ao hospital visitar familiares e amigos. A que lá me levou mais vezes foi a doença do meu pai,que Deus já lá tem. Uma operação obrigou a um internamemto demorado. Para lá chegar,tinha de atravessar muitas ruas,mas, se quer que lhe diga ,achei-as todas iguais. Para além disto,vinham as preocupações quanto ao futuro Que seria deles quando já não pudessem trabalhar? Ralava-os a magreza das reformas que iriam receber. Como é que nos iremos arranjar,se agora é o que se sabe? Os achaques rondam-nos,e quando lá chegarmos estarão bem instalados. Quem nos pagará os remédios? O disco era quase sempre o mesmo. De alguma coisa se havia de falar ,e eram as suas vidas o que eles melhor conheciam.

ALGURES NESTE VALE - DE NINGUÉM

Não importa o sítio. Não era no cume de uma montanha imponente,não era no fundo de um vale edílico,não era no centro de uma planície imensa,não era em qualquer outro lugar assim. Era algures,por aí,num canto humilde. Pois foi precisamente aí,nesse sítio simples,que,certo dia,um dia vulgar,surgiu uma imagem do Criador. Não se sabia de onde tinha vindo,quem a tinha feito,porque fora ali posta. O certo é que ela ali estava,como que interpelando,como querendo dizer qualquer coisa de muito importante. Talvez ali tivesse estado sempre,só que não se dera por ela. O que mais fazia pensar quando para ela se olhava com olhos de ver, era a cabeça,mas o resto não lhe ficava atrás. O tronco era robusto,viril,tal um de lutador,daqueles das antigas arenas,os braços e as pernas eram musculosos,a indicar que o tronco tinha neles e nelas suportes da mesma força. Mas era a cabeça,sem dúvida,que mais impressionava,sobretudo,a cara,de uma cor indefinida,de nenhuma cor,uma cara de ninguém. Era,pode dizer-se,uma cabeça-síntese,parecida com todas as cabeças,uma a uma,sem uma escapar.

ALGURESNESTE VALE - VIDAS

Parecia aquilo um velório. Eram oito à mesa,uma mesa que deveria ser farta. Pelo menos,era de apetecer o que estava exposto,e que eles,pedindo-lhes,serviriam. Ali,á mesa,não se ouvia uma palavra. Talvez estivessem cansados,e mais cansaço os esperasse. Talvez estivessem fartos uns dos outros. Talvez estivessem com saudades das suas famílias,das suas terras,que alguns tinham vindo lá de muito longe. Mas vontade de falar é que lhes não faltava,pois foi ver quem mais falava com um estranho que lhes aparecera,e que por eles se interessara,embora dele não lhes viesse uma maneira de se libertarem daquela sujeição,que era estarem ali horas e horas a atender este e aquele. Vidas.

ALGURES NESTE VALR - CANA DE PESCA

Estava-se no fim do mês e o dinheirinho da magra reforma ainda só acenava, mas lá muito ao longe,que mal se via. De maneira que ele se via obrigado a esgravatar onde lhe cheirasse haver coisa de préstimo. E,naquele início de tarde,calhou passar por um contentor,talvez um dos que mais surpresas costumava reservar. Levantou a tampa e inspecionou. Lá viu,mais uma vez,qualquer coisa de aproveitar. Mas os seus braços eram de fraco alcance,pelo que necessitava de uma cana de pesca. Olhou em volta e descobriu-a. Tratava-se de uma estreita tábua com um forte prego bem ao alto,feito arpão. E foi simples. E um grande marmelo viu,de novo,a luz do dia. Não estaria todo como devia ser,mas ele lá teria artes para recuperar coisa que se visse.

ALGURES NESTE VALE - É O QUE ME VALE

A senhora,já de oitenta anos,merecia um elogio. E foi o que se fez. É que acabara de facilitar a vida a alguns de menos idade. Tem aí uma cabecinha de invejar. Tomaram-na muitos,velhos e novos. Pois é. O pior é o que me espera lá em casa. O meu marido está taralhouco,sem dizer coisa com coisa. Só me atrapalha a vida. Mas a minha desgraça não se fica por aqui,embora esta já me chegasse. Vejam lá os trabalhos em que estou metida. Para além do velho,ainda tenho a meu cargo um filho de cinquenta anos que endoidou de todo. Não sei porque Deus me destinou este fardo. O que é que se havia de dizer ,perante desdita tamanha,para a confortar? Um ainda se atreveu. Para a compensar,Deus deu-lhe tino e vigor para dar conta de tais trabalhos. É o que me vale.

ALGURES NESTE VALE - ALTOS RISCOS

As uvas estavam prestes a serem colhidas,pelo que um estranho apanhado entre as videiras não seria bem visto. Mais ainda,se trouxesse sacos de plástico,embora transparentes,arriscava-se a que o maltratassem. Não chegaram a tanto,mas do epíteto de ladrão não se livrou,uma e mais vezes. Aconteceu isso,nesta tão arriscada altura,porque um jovem estava cheio de pressa para fazer um certo trabalho. Para tal,tinha de colher folhas e terra numa vasta zona. Se acaso deixasse passar aquela oportunidade,teria de esperar pelo ano seguinte. Seria como estar a marcar passo por longos meses,e isso é que não. Necessidade,a quanto obrigas. Das folhas,obteve fotografias que mostravam,claramente,sintomas de uma doença. Tinham,pois,para o jovem,um grande valor,sobretudo porque a elas estavam associados altos riscos. Tinham-lhe custado,pode dizer-se,suor e quase sangue. Cometeria uma injustiça quem dele duvidasse. Pois foi o que sucedeu. Um ilustre senhor,ao vê-las,não se conteve. De que livro as surripiou?

ALGURES NESTE VALE - OS MAUS DA FITA

Olha o diabo dos corvos. Para o que lhes havia de dar. Viram-no ali sozinho e vá de nele se vingarem,atirando-se,vertiginosamente,em voo picado. É certo que não morria de amores por eles,sabe-se lá porquê,mas tinham errado o alvo. Não fora ele que dependurara os seus muitos irmãos,sem cabeça,ali expostos nos ramos das azinheiras. As cabeças serviam como prova,para um prémio. Diziam que davam conta das crias,de coelhos,de perdizes e demais familia. Esta disposição não seria só ali. Era capaz de estar muito generalizada. Uns bons anos passados,tivera ocasião de o testemunhar,em terra longínqua. Mostravam lá,com grande pormenor,os estragos que eles causavam. Eram os maus da fita.

ALGURES NESTE VALE - COMBÓIO À PORTA

Era uma terra nem pequena,nem grande,uma terra asim assim,que ficava lá para o cabo do mundo,mas com comboio à porta. Nessa terra,havia três pessoas importantes,o comerciante João,o médico e o engenheiro. O senhor João ia,uma vez por outra, à capital,para se actualizar. Aquilo era um contar de novidades de estarrecer,no café central,à noite,depois dos trabalhos. Certa vez,o senhor João contou também uma aventura. Oh senhor João,se a sua mulher calha a saber,coitada dela? Não tem dúvida. Ela sabe muito bem que é só dela que eu gosto,ela está sempre em primeiro lugar. O médico não tinha mãos a medir,mas não na sua profissão. Como a gente lá da terra raramente estava doente e ele não era de se encostar às paredes,arranjara outros interesses. Ele era agente disto e daquilo, era agricultor,ele era,acima de tudo,mecânico de viaturas. A terra era ponto obrigatório de passagem de tractores e de camionetas,que,frequentemente,tinham as suas mazelas,a necessitar de tratamento. E o médico intervinha,a dar uma ajudinha. Chegava a estender-se no chão,a examinar eixos e cambotas,ficando numa lástima. O engenheiro era o responsável de uma grande obra. Por tal motivo e por estar muito interessado em encarecer o seu complexo trabalho,era ele que pontificava. A grande obra iria custar metade do que estava previsto. É que ele sabia poupar. Hoje meti nos cofres da empresa um dinheirão,era a sua expressão favorita. Quem eram os ouvintes para daquilo duvidar? Mas parecia haver ali economias a mais,alguém teria feito mal as contas.

ALGURES NESTE VALE - BAGAÇOS E PASSAS

Os cimos onde ele se demorou ,só vistos. Foi mesmo façanha de estarrecer. Muito podem,pois,enganar os começos.Numa manhã de bater o queixo,quando ele andava muito cá por baixo,comendo pão que o diabo amassou,desabafara,a modos que desconfiando das suas capacidades. Não sei como me tenho aguentado.Metia um grande dó olhar para ele,um corpo amarfanhado,quase transparente. Meio curvado,cara lívida,olhos encovados,era uma personifcação da derrota.Estou aqui,já ia alta a manhã,apenas com um bagaço e uma passa. Coisas só para dar um calorzinho aos ossos. Muitos outros dias não teriam arrancado melhor.A escalada foi meteórica. A apoiá-lo,não lhe faltaram dons,deve afirmar-se,em abono da verdade,dons excelentíssemos. Mas sem aqueles muitos bagaços e muitas passas não teria,com toda a certeza,chegado tão alto e lá permanecido.

ALGURES NESTE VALE - COISAS QUE ACONTECEM

Era toda uma vasta área a estudar no que dizia respeito à qualidade dos solos. Tratava-se de um vale que saíra de uma inundação há já uns meses,mas ainda com restos dela. Pois foram estes restos,deixados para o fim,que obrigaram a usar botas de borracha e sonda. Pobres mãos que ficaram numa lástima. A fotografia aérea,base do trabalho,e sede de registos,passou também a incluir números negativos,a indicar a profundidade da colheita. Não se foi além de quarenta centímetros, pois havia o risco de maus encontros com crocodilos. Uma coisa destas só vista,visto que contada não tem qualquer graça. É que havia mesmo por ali bichinhos desses. E quem já não podia contar era um javali que teria pisado o risco,indo para além da fundura indicada. Coisas que acontecem.

sábado, 14 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - AMPLO VALE

Não mais se pudera esquecer ele do rio Longa,ainda que se tivesse tratado apenas de uma convivência de escassos meses,mas que pareciam ter sido uma vida inteira,pela novidade,pela variedade,pela intensidade do viver. Tinha-se-lhe,de algum modo,entranhado. Bebera da sua água,embora flitrada,lavara-se com ela,atravessara-o,duas,quatro vezes,a bem dizer,diariamente,de jangada,com demoras,caminhara ao longo das suas margens,por motivo de trabalho,ou por avaria do jipe,vira-o,lá do alto,serpenteando,mansamente,por amplo vale,deleitara-se com o frenesim de muitas bocas de peixe que nele moravam,na disputa de alguma coisa de comer,e com o voo picado de algum pelicano na procura de sustento,admirara a galeria de esguias palmeiras e de tufos de bananeiras que o alegravam,descera-o,uma vez,quase até à foz,vendo desfilar lagoas por ele deixadas,restos de inundação recente,lagoas atapetadas de nenúfares,assustara-se com o indesejável encontro com uma giboia,que ia lá à sua vida,quase noite,abandonando o fresquinho da sua casa de beira-rio. Podia lá tê-lo esquecido. Fora conhecimento para sempre. Mas não só ele,mas também o Nhia,que o engrossava.

ALGURES NESTE VALE - TER OU NÃO TER

O tema era da maior atualidade,não lhe restava a mais ligeira dúvida. Por ser assim,não resistiu a apresentá-lo. Tratava-se da reta pronúncia da palavra euro. Um tema,como bem se vê,muito sério e de transcendente importância. O orador estava bem documentado. É assim e não de outra maneira,como a de muitos bárbaros que por aí andam a estragar o ambiente. Uns verdadeiros assassinos da sagrada língua de Camões. Se ele fosse vivo,estaria aqui em meu lugar. Era dele esse direito e,sobretudo,o seu dever. Não se pode brincar com a língua. Mas não era preciso,pois tudo quanto ele dissesse,estou eu aqui dizendo. Nada iria acrescentar. A entrega,o entusiasmo,o calor posto na defesa da sua causa foram tais ,que o suor corria-lhe,abundante,pelas faces ,tintas de vemelho vivo. Houve até alguém que receou ir dar-se tragédia. É que lhe pareceu ver,em dado momento,o orador cambalear. Outro alguém asseverou ter dado conta de chispas de furor,quando ele fulminou os bárbaros ignorantes. Num canto,um assistente ia ouvindo e contagiando-se daquela braseira. E,a certa altura,não se conteve. A tampa saltara, com estrondo. Aquilo estava a ser demais. Um sujeito a preocupar-se com a reta pronúncia do euro,quando a tanta gente euros faltavam. Não era uma questão de ser ou não ser,mas de ter ou não ter. E o que importava,de longe,era ter euros,quaisquer que fossem as suas roupagens. Escusado será dizer que o orador nadava em euros.

ALGURES NESTE VALE - TRAQUITANA

Na banca,apenas se via meia dúzia de pequeninos peixes,ainda vivos. Tinham sido pescados de madrugada,numa barragem,a uns bons quilómetros dali. Eram de um velho,de setenta e mais alguns anos,um tanto para o baixo,ainda vigoroso e de ricas cores. Mas valia-lhe a pena,dava para o petróleo? Tinha de dar,pois como é que se havia de viver? A pensão era o que se sabia,uma miséria,mal chegava para as côdeas. Andava a gente numa vida de rudes trabalhos,hoje para um,amanhã para outro,para se chegar àquilo. O que lhe valia eram uns biscates,ali e acolá,onde calhava,de vária natureza,que ele não era esquisito. Uma pessoa tinha de se desenrascar.Valia-lhe também ser um homem de poucos achaques. Depois,um sobrinho dera-lhe uma traquitana,de que se tinha farto,mas que a ele lhe fazia um grande arranjo. Fora com ela que chegara ainda a tempo para a venda. Por causa daqueles peixinhos,o resto do que tinha apanhado,não dormira naquela noite. Passava-se muito. Mas tudo ia do treino e a ele não lhe faltara. Podia acontecer que o vissem ali na semana seguinte. Dependeria isso da pescaria. Faria umas contas e logo veria se lhe valeria a pena vir até ali,onde as pessoas parecia terem mais dinheiro do que lá para as suas bandas.

ALGURES NESTE VALE - PALAVRAS

A pouco e pouco,uma perceção,cada vez mais certeza,se foi apoderando dele. Sentia-se cada vez mais ele,só ele,como um ilhéu,rodeado inteiramente por estranhos. Mais ainda, essa perceção não se confinava a ele apenas,estendia-se a todos,vendo-os a todos também como uns ilhéus. Era uma perceção que se traduzia na realidade do EU e do TU,bem diferenciados,sendo uma pura ilusão a alma gémea,ou complementar. O EU limitava-se a usar o outro,qualquer que ele fosse,para satisfação pessoal,e mais nada. Sentia-se melhor com o outro,simplesmente. Só convenções levavam a suportar desentendimentos inultrapassáveis,geradores de mal estar, que o Eu recusava,e o TU também. Dalgum modo,tanto o EU ,como o TU,usavam e deitavam fora,por já se estar a ferir a realidade de cada um,a suprema realidade. Amor,amizade,não passavam,pois,de palavras. Eram sentimentos ilusórios,possíveis só com anjos,e anjos não eram o EU e o Tu,sujeitos a uma vida de luta,do salve-se quem puder,fazendo recurso a sabia-se lá que armas. Pobres dos fracos,que,para sobreviverem,têm,muitas vezes,de se submeterem,mostrando-se bonzinhos,em tentativa de amansar os fortes,de escaparem.

ALGURES NESTE VALE - POSTIÇO

Olhava para aquelas veigas,para aqueles campos de milho,para aqueles prados pontuados de vacas e de carneiros,para aquelas ramadas,para aquelas casas,para aquelas gentes. Apaziguavam,mas não extasiavam. E era assim,em êxtase,que deviam ser contemplados,como os tinham contemplado pintores,romancistas e poetas. Os quadros lá estavam,mas um não sei quê de postiço os envolvia. Os rios corriam mansamente,os campos rescendiam,os pássaros orquestravam. Mas as gentes,oh as gentes,tinham-se urbanizado. De muito pouco valiam romarias,ranchos folclóricos,evocações. Grande parte do passado fora-se irremediavelmente. A Miquelina divergia um quase nada do Conselheiro. As margens do Lima faziam lembrar as do Tejo. A estrada da Apúlia parecia a do Guincho. Para o reaver,esse passado perdido,só recorrendo ao registo certo. Ou então,mais pobremente,simular,à maneira de Lisboa em Camisa.

ALGURES NESTE VALE - UMA DELÌCIA

A mesa estava posta,uma mesa única,de pensão,e os convivas foram chegando. Um deles,trazia um grande queijo fresco ,envolvido em papel de jornal. Pousou-o, destapado. Naquele fundo branco,eram bem visíveis marcas negras de letras. Mas ele não as veria ou não lhes atribuiria grande importância. Aquilo ficaria por ali,se ele não tivesse a amabilidade de oferecer. Acharia indelicado não o fazer,tanto mais que estava em presença de gente mais instruída do que ele. Estaria,pois,cheio de boas intenções. Por delicadeza,também,aquele a quem ele se dirigiu,talvez por se encontrar logo à sua direita,não lhe quis dizer porque não aceitava uma porção daquele queijo,que devia estar uma delícia,como o seu próprio dono,aliás,asseverou. Não havia melhor na terra,podem crer. O senhor insistiu e recebeu nova negativa. À terceira,explodiu. Pois é,é por ser oferecido por alguém de poucos estudos. E levantando-se,saiu desabridamente da sala,para não mais aparecer.

ALGURES NESTE VALE - UM EMPRÉSTIMO

Era um velho baixinho,parco de carnes,de barba por fazer. Estava com setenta e quatro anos,mas parecia ter cem. Queria um empréstimo,pouca coisa,o suficiente para uma carcaça. Então,não tem reforma? Tinha,só que a receberia no dia doze,e estava-se ainda a três. Era uma reforma muito magra,como ele. Dava para muito pouco e bem depressa se ia toda. Segurava um cigarro por acender. Olhe que isso faz-lhe mal à saúde,e,depois,é muito caro. Sabia,mas era só um de vez em quando, para matar saudades. E aquele encontrara-o,por acaso,no chão. Mas olhe que é um empréstimo,repetia. Quando puder,pago-lhe. A gente há-de se encontrar por aí,pois a sua cara não me é estranha. Mas se quiser,procuro-o em casa. É só para um remedeio.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - FINA CEIA

À vista de todos,banqueteou-se. Era hora da ceia e ele devia estar com pressa. Nem se lembrou de oferecer,mas estava desculpado. Ele mesmo se encarregou de todas as operações. Já vinha preparado. De um saco,já muito gasto,retirou tudo quanto era indispensável,menos o vinho,mas esse,a seu tempo,apareceria,pois ali havia muito.E o que era tudo? Uma cebola grande,daquelas próprias para um regimento,azeite,vinagre,sal e pão. Com um canivete,cortou a cebola em rodelas muito finas,que foram caindo num prato de esmalte,já também muito usado. Regou-as prodigamente com azeite e vinagre,que,mesmo assim,foram incapazes de dissolver as carradas de sal,ao seu gosto. O molho devia estar uma delícia,pois grande parte dele marchou logo,ensopando pedaços de pão. Finalmente,a montanha de rodelas lá seguiu o seu destino,mas com vagares. Foi um prazer vê-lo comer. Prazer maior deve ele ter tido. E assim,ficou sobejamente demonstrado como tão simples é,e quase de graça,o ter uma fina ceia.

ALGURES NESTE VALE - PARTIDAS

A terra estava lá para o fim do mundo,onde as novidades custavam a chegar. Como as modernices obrigam quase sempre a maiores gastos,muitos não se importavam de as dispensar. Quando mal,nunca pior,era o seu entendimento.Mas o pior encontra-se,às vezes,num lacrau que anda lá na sua vida. De noite,ele vê melhor,sobretudo se for pisado. E foi o que sucedeu a uma senhora que se agachara para fazer o que tinha de ser feito. O dito bichinho não esteve com meias medidas,pagando-se com a moeda que usa em casos destes. Quase se ia a senhora deste vale de lágrimas. Valeu-lhe a medicina caseira,que tem muito préstimo quando não há outra. Não é em vão que se anda por cá há milénios.Logo que se pôs boa,resolveu casar a filha. Para isso,consultou,como convinha,a mais creditada mulher de virtude das redondezas. Fizeram-se as benzeduras para o efeito e marcou-se a boda de acordo com as indicações. Era casal para durar. Os festejos deviam condizer com as promessas. Foram três dias de arromba,em que se consumiram,para além de tudo o mais,alguidares e alguidares de tremoços.Aconteceu,entretanto,uma visita inesperada para alguns. Ainda mal rompera o dia,o quarto do tálamo foi invadido,sem cerimónias, por um magote de jovens em grande algazarra. Não são partidas que se preguem,mas tradições têm que se respeitar.Mas há uma visita mais ou menos esperada que todos,sem excepção,um dia recebem. Foi o caso de uma velhota que se lembrou,pouco tempo volvido,de ir desta para melhor. Surgiu logo um coro de carpideiras,que faria um belo serviço a espantar pardais esfomeados. Não fariam outro serviço por aqueles sítios. Não se podia morrer ali em sossego,que elas não deixavam.

ALGURES NESTE VALE - DO MESMO OFÍCIO

Não se sabe como tinha sucedido antes,mas naquela altura,era bem visível que faziam tudo para não se encontrarem,e,quando assim calhava,por ter de ser,ignoravam-se ostensivamente. Seria isto por se tratar de oficiais do mesmo ofício. Um,era um gigante,o outro,um delgadinho.O gigante,mal rompia o dia,saía da sua toca para repetir o peregrinar de sempre pelas ruas mais frequentadas lá da vila,em andanças de ida e volta,de passadas largas,pesadas. Parava aqui e ali,mas não se demorava,pois tinha mais que fazer.Como gostava muito de viajar e de fumar,mas não podia fazê-lo à sua custa,alguém tinha de colaborar. Para isso,contava com os visitantes,por os da terra já terem desistido de lhe sustentar os gostos. Era ele que fixava as quantias,de acordo com o seu destino. Para as viagens,retorno incluído,eram três euros,para um maço de tabaco,contentava-se com menos.De vez em quando,ia até à biblioteca,demorando-se lá uns curtos momentos na secção infantil. Os miúdos não o receavam,pois ele não fazia mal a uma mosca. Os visitantes é que não sabiam,o que lhe facilitava a vida.O delgadinho era também madrugador,andarilho e amigo de abordagens de estranhos,porque com os outros não valia a pena. Avançava para eles como uma seta,para um vigoroso aperto de mão. Qualquer moedita o satisfazia. A biblioteca não o interessava,fugindo dela a sete pés.

ALGURES NESTE VALE - FUNDO VERDE

Daquele alto terraço,qual atalaia,em todo um círculo,havia muito para onde olhar. Em baixo,a vila estendia-se ao longo do dorso do monte,com ramificações nos seus contrafortes. Lá estava a igreja,que regularmente quebrava o silêncio,com o bater das horas e dos quartos. Mais adiante,os edifícios dos correios,dos bombeiros e dum lar misto para crianças e idosos. Depois,a escola primária e a secundária. Num dos extremos ,erguia-se a Adega Cooperativa,onde se fabricava o néctar do concelho,um dos limites da zona demarcada do vinho do Porto. Aqui terminava o xisto e começava o granito do vinho verde. Lá ao longe,num dos sectores,era um degrau do Marão. Em toda a volta,socalcos e mais socalcos,alguns a serem transformados. Aqui e ali,cerdeiras punham manchas vermelhas em todo aquele fundo verde. Um riacho descia apressadamente para o Douro,ali a dois passos,impregando o ar com o ruido de várias cascatas anãs. À noite,enxames de luzes denunciavam a presença de muitos lugarejos e na estrada para Amarante surgiam focos de faróis,escondidos,a intervalos,por um ou outro biombo. Morcegos cortavam o ar em busca de alimento. A espaços,ouvia-se o ladrar de cães das quintas próximas ,nessa altura,em permanente vigília,pois um grupo organizado,uma outra espécie noctívaga,andava por ali à cata de alfaias agrícolas. De vez em quando,lá das bandas de Lamego,vinha o ribombar de trovões,a colaborarem no alerta. Era mesmo de armar ali tenda.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - DESABAFO

Era uma mulher de meia idade. Vinha muito carregada e tivera de vencer uma ladeira íngreme. Rica ocasião para descansar e ficar um bocado à conversa. Quando as coisas se proporcionam,não se pode calar uma pessoa que tem os seus problemas. E nada melhor do que um desconhecido,com ar de quem dali não vem mal ao mundo,para desabafar. Ela bem precisada estava,coitada. Com as vizinhas não podia,que eram todas umas invejosas. Que culpa tinha ela de possuir um filho que era um verdadeiro artista? Sim,que culpa tinha ela? Tem um grande jeito para a música. O chefe da banda faz-lhe ,porém,a vida negra,pois sabe que o meu filho vale mais do que ele. O que nos salva é o presidente da câmara que lhe reconhece as qualidades e que o proteje. Já lhe prometeu, até ,ajudá-lo a tirar um curso lá na cidade . Se eu fosse contar isto às minhas vizinhas,riam-se de mim. Não acreditavam e chamavam-me outra vez vaidosa. Mas isto é tudo inveja. Coitado também do presidente ,que não se livra dela. Há para aí gente que não gosta dele e dizem coisas. Invenções,é o que é. E invejas,também,é o que eu digo. Ficava muito agradecida por a ter escutado. Com a vizinhança,está proibido,caem-me logo em cima. Vivo para ali sozinha,à espera de que o meu filho chegue.

ALGURES NESTE VALE - MAUS TRILHOS

Chovera a cântaros naquele mês de Novembro e a ribeira ia caudalosa. A noite aproximava-se e era altura de regressar a casa. O jipe já pensara nisso,pois não se estava sentindo nada bem. É que precisava de cuidados que só lá na vila encontraria. Ainda se fez ao caminho,mas chegara ao limite das suas fracas forças. Acudam-me. E agora? Ao longe,via-se um "monte". Talvez lá houvesse remédio. Vieram logo com um tractor,e lá o trataram como puderam. Ficou a andar, mas muito mal e incapaz de ver na escuridão,que,entretanto,se fizera. E agora? Haviam de chegar a casa,que devagar se vai ao longe. O jipe,muito chegado ao guia,por vezes,a tocarem-se,lá avançava,penosamente,mas muito amedrontado,pois o fragor da corrente,mesmo ali ao lado,era medonho. Valeu o caminho ter sido aberto em granito esbranquiçado. O jipe esteve um dia a recompor-se,mas disseram que não iria durar muito. Mas aquela era gente sem coração e não descansaram enquanto o não puseram a calcorrear os maus trilhos do costume.

ALGURES NESTE VALE - DE MÃOS LARGAS

Estava a ouvir os carros a passar na rua com o chão molhado de chuva a acair. Fora assim que há muitos anos ele acordara de madrugada,algures numa pensão alentejana. Parecia ter-se gorado o trabalho da noite a preparar as coisas para uma sementeira de trevo da Pérsia. O tempo acabou por se recompor e lá foi à procura de auxílio.Apareceu na forma de um velhote muito magro,com barba de dias. Era dono de uma parelha de muares tão velhas como ele. Mas os três sabiam do seu ofício,que a aprendizagem começara cedo e em excelente escola.A água deixara de vir do céu,mas havia mais prometida. As mulazinhas não podiam mandriar,bem como o seu condutor. A obra ficou perfeita. Todos não cabiam de contentes,sobretudo o trio assalariado. Ainda se haviam lembrado deles,graças a Deus. Tinham estado um largo tempo parados,mas não há mal que sempre dure. O par teve naquele dia rancho melhorado e o velhote,para além do que fora estabelecido,banqueteou-se com ceia lauta no café do lugar.A previsão confirmou-se. A chuva voltou,de mãos largas,fazendo das suas. As sementes boiavam. Tinham sido esforços baldados. Feitas as contas,restara a alegria dada ao trio assalariado. Não se perdera tudo.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - UM GELADO

Já devia ter ultrapassado o cabo dos noventa,ou talvez não,que isto de idades tem muito que se lhe diga. Caminhava quase em ângulo reto,apoiado numa bengala e numa canadiana. Conseguira descer uma escadaria de dois lanços,atravessara a rua e embrenhara-se no jardim. Avançava muito tentamente e,enquanto o fazia,soltava gemidos. Eram ais,numa toada que lembrava,das fitas,a dos remadores das galés. Ele também seria uma,já muito gasta,a desconjuntar-se,mas que ainda se mantinha navegando. Só que nela havia apenas um único tripulante. A cabeça seria a proa. O fluido envolvente deixar-se-ia abrir,sem resistência,com pena dele. E a embarcação lá ia,muito arrastadamente,mas ia. Parou junto a um quiosque. Encostou os apoios e ergueu com esforço a cabeça. Pediu um gelado,pagou,recebeu o troco e retomou a navegação,mas por apenas mais uns metros. Sentou-se num banco,pousando a iguaria ao lado. Tossiu,assoou-se,instalou um cigarro na boca e acendeu-o. Tudo isto sem pressas,como que antegozando o festim. Finalmente,chegou o grande momento. Chupava,dava uma fumaça,tossia e olhava. Para onde? Ficaria isso com ele.

ALGURES NESTE VALE - A MOCA

Ganadaria necessita de espaço, e aquela herdade fora arrendada para casa dos garraios. Ele tinha de estar,pois, sempre alerta,que o seguro morreu de velho. Para maior descanso,antes de iniciar o trabalho,dirigia-se ao "monte", para saber onde se encontravam os bichinhos. Cortou-lhes as voltas por alguns dias,mas por fim,que a tarefa tinha de ser concluída,teve de ir ao seu encontro. Lá estavam eles,dispersos em pequeno vale. Ali havia boa comida,que a terra era fresca. O maioral,que estava sentado no rebordo de um poço,aproximou-se. Vinha apoiado num cajado,em forma de moca. Então,a montada? Ficara lá no "monte",raramente a utilizava. Vira-os nascer e conheciam-se bem. Então,para que servia a moca? Eles eram novos,eram como crianças. Gostavam de brincar e por vezes excediam-se. Era nessas alturas que a moca intervinha,para os separar,para evitar que se aleijassem,o que seria uma carga de trabalhos e,talvez, grosso prejuízo. E o diabo do homem dizia isto com naturalidade,como se estivesse a falar de cães ou de gatos. Na sua companhia,e com a proteção do jipe,lá se deu conta do serviço,mas sempre muito amedrontado,a pensar que eles podiam perder o respeito à moca.

ALGURES NESTE VALE - ERA A ROSA

Fizera uma boa escolha a cegonha para instalar a família,lá mesmo na torre da igreja. De lá,ela podia ver bem o que se passava no local que mais apreciaria,um minúsculo retângulo verde,perdido na imensidão amarela dos restolhos do vale. Levantava-se cedo. Despertaria com o início da faina naquele oásis. Gostava da companhia já conhecida de outros anos e bem depressa se lhes juntava. Consideravam-na já da casa,pelo que tinha,assim,duas,e puseram-lhe o nome de Rosa. Nenhum ruído dos habituais a amedrontava,nem mesmo o do trator. Era o mesmo que nada. Nem levantava a cabeça do fundo dos regos em que procurava matar a fome que trouxera doutras paragens. As minhocas,lembrando enguias,só ali as encontraria. Pudera,não faltava água,que vinha do rio,mesmo ali ao lado,nem estrume de muitas vacas que ali se criavam,muito bem criadas,que comida era quanta elas queriam,uma fartura nunca vista. Sonharia com elas,as minhocas,e também com as vaquinhas,que bem conhecia,pois muitas vezes se cruzavam à mesa. Apenas dele a Rosa fugia. E isso entristecia-o muito. As tentativas que ele fez para a cativar,usando de muitas artimanhas,mas foi tudo em vão. De nada valiam outras presenças. Mal ele se aproximava,sempre de bons modos,ah asas para que vos quero. E aconteceu o que era de esperar. Ele,não suportando mais aquele repúdio,aquele desprezo,com ares de virem para ficar,abandonou aquele lugar para não mais volver. Ela,não. Por muitos anos ali voltou,sempre tranquila,pois sabia muito bem que o não iria lá encontrar

ALGURES NESTE VALE - QUASE VOANDO

Logo eu saí assim. Assim se lastimaria,mais uma vez,aquele homem. O seu muito abanar da cabeça parecia indicá-lo. Era uma figura magra,enfezada. O chapelinho às três pancadas também não ajudava.Lá ia ele,como era costume,no seu andar lesto,miudinho,quase a partir-se,quando avistou ao longe uma camisola branca,muito justa,de moça encorpada. Estacou de imediato,ficando à espera que ela avançasse. Como que abriu alas,quando ela passou,muito rente a si,que o passeio era estreito. E rodou,quando foi caso disso,um tanto a tremer,a modos que perturbado,prolongando a mirada.A sua vontade seria segui-la. A tanto não chegou. E lá prosseguiu,a cabeça a abanar muito,de passo mais ligeiro,quase a correr,quase voando. Estaria sonhando. Era outono,também,tempo de fantasia.

ALGURES NESTE VALE - GHEGAR AO FIM

O botão desabrochara,cheio de ilusões,e dele surgiu uma flor linda,viçosa. E veio logo um gavião cobiçoso e dela se enamorou. E ali,num instante,tudo se consumou.E da flor,que ainda agora começara a sê-lo,semente brotou. E meses volvidos,uma criança nasceu.Que lindo menino aquela flor,ainda viçosa,ao colo trazia. Que bem os dois ficavam.Mas bem depressa,a flor que viera viçosa,linda,murchou,pois quase tudo lhe faltou.Pobre flor que tão rápido murchaste. Que pressa foi essa de chegar ao fim?

terça-feira, 10 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - AO MESMO CLUBE

A coisa conta-se depressa. A mocinha negra dava clara indicação de que muito em breve germinaria. E aproveitou,interpretando correta,ligeira e prazenteiramente, a condição daquela fila. Também tinha direito,pois então,ela que não estaria habituada a tal cortesia. O que ela foi fazer. Uma velha,daquelas tronchudas e mal encaradas,logo reagiu. Qualquer dia também arranjo uma almofada. Mas não se ficou por aqui. A menina da caixa,por sinal,negra também,que viera com justificações,levou, igualmente, a sua conta. Vê-se mesmo que pertencem ao mesmo clube

ALGURES NESTE VALE - PEIXES VIVOS

Eram o João e o José. O João comandava as vendas e o José encarregava-se das contas. Um,sabia de números e de letras,o outro,de trapos e demais família. Mas não havia duas pessoas mais iguais e mais diferentes.Eram iguais em quê? No tamanho,para o baixo,na cabeça pendida,no cabelo negro e basto,nos olhos fugidios,no ar astuto e untuoso,no jeito de lidar com o patrão,que se sentiria deles dependente. E diferentes em quê? Na gordura,o João a tirar para o chupado,e o José para o luzidio,na linguagem,no João ,desbragada,no José,polida e buscada.Nunca se sabia como era o seu acordar. O que viria dali,daquelas duas cabecinhas,de um e do outro? Boa coisa não seria,adocicada,macia,no José,amarga,áspera,no João. Cada um brincava à sua maneira,mas gostavam ambos dos seus jogos de palavras. Tudo neles tinha um duplo sentido,ou mais. Nunca se vira gente tão desconcertante,tão escorrregadia. Pareciam peixes vivos

ALGURES NESTE VALE - MAIS FRACAS PERNAS

Lá de onde ele viera nunca vira uma tal bicha. É que se tratava,sobretudo,de velhos. Depois,o tempo ameaçava chuva. Que estão eles aqui a fazer com um tempo assim? Aquela é uma casa de gente rica e hoje,sábado,é dia de esmola. Consta que é a porta que rende mais. A criada traz sempre uma saca de moedas. Sabendo disso,formam-se bichas como a que está vendo. Chegam a dar a volta ao quarteirão. Já reparou nos cajados? É o arrimo de quase todos. Não podendo trabalhar,só lhes resta andar de mão estendida,mesmo que lhes custe abandonar a casinha. Se estiver para isso,vá por essas ruas,que há-de encontrar mais. Alguns vão de uma bicha para outra. Os que ainda se podem mexer com algum desembaraço ficam a ganhar. É,afinal,a luta pela vida. Claudicam primeiro os que tiverem mais fracas armas. Neste caso,mais fracas pernas.

ALGURES NESTE VALE - À BOLEIA

Para atravessar aquela ponte,até os miúdos tinham de pagar. Cabia-lhes meio tostão. Não era muito,mas uma fortuna para eles. No sentido de compensarem,de algum modo,o forte rombo nas magras carteiras,procuravam ir à boleia. Sempre aparecia uma alma caridosa. Havia preferências,claro. O ideal era uma alma de automóvel. Mas quando não aparecia ou não estava para isso,lá tinham de ir de carroça ou de camioneta de carga. Quanto às carroças, tinham, também,os seus gostos. Daquelas puxadas por parelhas de mulas,só em último recurso. É que o diabo das mulas não perdiam a mania de andar em ângulo quase reto,como que zangadas,expulsando-se. Mas com cavalos,nem sempre se ia sossegado. Alguns perdiam a cabeça,ao olharem ou sentirem as águas a correrem lá por baixo,e era um monte de trabalhos. O condutor,coitado,era obrigado a descer e ir à pata,a seu lado,segurando as rédeas com firmeza. Os miúdos,coitados deles,também,nestes transes,ficavam muito tristes,pois lá tinham de fazer uso das pernas. Em camioneta de carga,só junto à cabina. É que a ponte era de travessas de madeira mal unidas. E assim,indo atrás,a um salto mais exagerado,arriscavam-se,na descida,a já não encontrarem transporte.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - MAIS PALHA

As meninas estavam interessadas em conhecer opiniões sobre aquela feira e não se importaram de abordar um sujeito que andava por ali a bisbilhotar. Que sujeito aquele,de sobretudo e com dois chapéus,um que trazia na cabeça e o outro,preparado para a chuva que andava a rondar. Chuva que ninguém mais temia,pelo que tinham deixado o chapéu em casa,se é que o tivessem. Mas primeiro ,quiseram saber de onde é que tinha vindoassim tão esquisito,e o que fazia? Lá foram esclarecidas e lá escreveram a sua opinião,o que levou mais tempo do que elas esperavam,por uma certa incompreensão de ambas as partes. É que o expressar dali não era bem o que ele conhecia e o que ele conhecia também o não conhecia lá muito bem. Enfim,deu para se entenderem. Mas porque estiveram demasiado tempo no mesmo sítio,aconteceu o que era de esperar. Foi preciso ir buscar mais palha,porque ,com o calcar ,formara-se uma poça de água muito escura,de chuva passada,mas que a terra,uma terra muito negra, não retivera,pois tinha sido muita a caída antes.

ALGURES NESTE VALE - SINTONIA

Aquele fora um encontro de muito cogitar. Sem aviso prévio,uma chuva miudinha,de molha-tolos,fizera a sua aparição,apanhando alguns desprevenidos. Por ali havia árvores frondosas,que ofereciam suficiente proteção. Sob uma delas,chegara,primeiro,uma jovem de porte atlético,com um pequeno livro,cujas folhas não havia meio de pararem. Um velho,que escolhera o mesmo guarda-chuva,pensando que a moça estava a precisar de ajuda, decidiu intervir. E aqui,aconteceu o inesperado. É que a moça nascera,e por lá andara alguns anos,numa cidade muito distante dali,precisamente em Newcastle upon Tyne,onde o velho, há um ror de tempo,estivera uns largos meses. Mas mais ainda. Ela residira muito perto do local onde o velho arranjara poiso. Mas que tremenda coincidência,concordaram os dois. Ali devia ter havido mãozinha misteriosa. Há por aí muita coisa ainda desconhecida,talvez radiações,talvez tropismos vários,e sabe-se lá mais o quê. E ,sem querer,como que empurrado,o velho teria entrado em sintonia com a jovem,e,irresistivelmente,dela se aproximara. É esta a covição do velho. Da moça nada se sabe a este respeito,mas,o mais provável,é ela nunca mais ter ligado àquele encontro. Pode, ainda ,acrescentar-se que o velho,num gesto de cavalheirinho,se prontificou a orientar a moça naquele local rico de memórias. Mas ela não esteve para aí virada. Ela,sozinha,se desembaraçaria,como,aliás,muitos d

ALGURES NESTE VALE - A CARTOLA

A feira estava a terminar. Naquele ano,o negócio fora muito fraco. Tinham escapado,apenas,as barracas de comes e bebes. As ruas das roupas,dos sapatos,das quinquilharias metiam dó. Só lá de onde em onde, é que aparecia alguém a querer saber o preço,ficando-se,quase sempre,por ali. Os carrocéis,os cavalinhos,os automóveis estavam às moscas. Os miúdos insistiam,berravam,mas os paizinhos não se comoviam. O circo ia pela mesma. Bem se esforçavam os arautos das maravilhas,mas os mirones não estavam para ali virados. Não queriam ouvir falar de trapézios,nem de arames,nem de malabarismos,quanto mais ver. Lembravam-lhes a ginástica que todos os dias tinham de fazer para equilibrarem as finanças. Os animais não os atraíam. Constava,até,que passavam fome. E as grades não pareciam,também, de confiança, por estarem muito atacadas de ferrugem. Num último esforço,anunciaram uma novidade,uma novidade de estarrecer. Venham ver o homem da cartola,o homem das grandes surpresas. Carros percorriam a cidade,esquadrinhando todos os bairros,mesmo os de lata. Venham ver,venham ver,que é quase de graça. O circo encheu-se. Houve outras intervenções,mas coisa rápida,a despachar. O suspirado momento chegou e fez-se um grande silêncio. O homem vinha de preto. A cartola era minúscula,pouco mais do que um dedal. Mostrou-a em todas as dire-. ções,acariciado-a repetidas vezes. Depois,ao toque de uma comprida e fina vara,que roçava o teto da tenda,sairam dela,em rápida cadência,objetos incríveis,que se iam amontoando. O espaço mostrava-se acanhado para tanta bugiganga. Por ação da poderosa vara apareceu um maior. Mais objetos esquisitos foram saindo,sem descanso. O circo foi crescendo,crescendo,irresistivelmente.Atravessou fronteiras,atravessou mares. Ocupou o mundo todo. O maior espetáculo do mundo.

domingo, 8 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - CONDÃO

Naquela casa muito rica,a festa começara cedo. Risos de crianças e forte cheiro a bolos saíam dela. Viera da cidade gente para a pôr a brilhar ,a várias côres,quando o grande dia chegasse. A alegria seria nessa altura ainda maior.Era a única casa, naquela terra modesta,que assim se estava preparando. E um moço,que,casualmente,acompanhara essa gente da cidade,nunca tinha pensado que pudesse haver Natais tão diferentes.E fora preciso lá ir para fazer essa descoberta. Tinha sido um despertar súbito para a crua realidade,o que o entristecera muito. Julgara sempre que tal festa fosse igual para todos e não era.Havia de acordar,um dia,em qualquer lugar. Mas porque calhara àquela terrra tal feito? Não mais se esquecera disso. E sempre que por lá passava,ou lá por perto,era com um grande respeito. Aquela modesta terra devia ter condão

ALGURES NESTE VALE - UM GRANDE JEITO

Tinha vindo lá da sua terra distante. Estava,naquela altura,ali,pois tivera necessidade de aprender umas técnicas que lhe seriam úteis para o seu trabalho. Era um moço simpático,de aspeto humilde. Aquilo lá na sua terra,às vezes,não andava nada bem. As pessoas davam em queixar-se ainda mais do que era costume. Chegavam ao ponto de de se revoltarem. Na terra ali mesmo ao lado,acontecia mais ou menos a mesma coisa. Então,o que é que de vez em quando sucedia? Inventava-se uma guerra. Apelava-se ao patriotismo e as pessoas de ambos os lados,com receio de que viesse lá o inimigo entrar-lhes pela casa dentro,esqueciam desgraças e preparavam-se para enfrentá-lo. Aquilo acabava por não passar de umas escaramuças na frontreira,mas tinha o tal condão de levar a esquecer desgraças,o que dava um grande jeito.

ALGURES NESTE VALE - HORROR

Como mudam os tempos,mesmo que não mudem as vontades. Estas permanecem,só que os tempos lhes temperam ou estimulam as expressões. O rapaz estava muito apaixonado. O seu olhar,o seu ar,as suas palavras traíam-no. Tudo se conjugava para a tradução em gestos do que lhe ia na alma. Bastava a ocasião e ela chegara. Os pares volteavam ao compasso de uma valsa. As mãos estavam presas e o braço dele amparava-a mansamente,delicadamente. Não sabia explicar o que se passara. Numa aproximação inesperada ou provocada,não se lembrava,os seus lábios roçaram ligeiramente as faces aveludadas e perfumadas. Horror. O que eu fui fazer,quase chorava o pobre moço no ombro do amigo. Que vai ela pensar? Sim,que vai ela supor? Que eu sou um animal,um devasso,um lúbrico. Não me perdoará,acredita. O amigo lá o consolou o melhor que pôde,mas ele estava inconsolável. Como mudam os tempos.

sábado, 7 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - O TRISTE FADO

Andam os dois pelas esquinas,a fazer pela vida e a fugir da autoridade. É que são,no seu negócio,dois desleais concorrentes do mercado,ali tão perto. Trata-se de um casal. Ele,um homem alto,aí de uns cinquenta anos,de ombros largos,de cabelo forte e basto,de ricas cores,de ar muito desembaraçado,da arriscada labuta,e não só. Ela,mais nova,talvez quarenta,com ar de que ele é quem manda. Trabalham separadamente,cada um no seu posto. Clientes não lhes faltam,que os preços são competitivos e a vida não está para esbanjamentos. Assim,ainda o fecho do mercado vem longe,já eles fecharam a loja. Há dias,foram vistos a conferir a caixa,que é como quem diz,a caixa dela,que a dele só a ele diz respeito,e a mais ninguém,nem à sua mãezinha. O que é que ela havia de fazer,se ele é o homem da sua vida? Nada,e bico calado,que aquela fortaleza,onde ela encontrou proteção,não é para brincadeiras. O triste fado,não resta dúvida.

ALGURES NESTE VALE - MARCA DA CASA

Ele precisava de ter umas lições de inglês,mas de modo a dar-lhe,rapidamente,um certo à vontade em terras de Sua Magestade a Rainha. Para isso,foi-lhe indicado uma senhora de larga experiência,nascida e criada na velha Albion. As lições começaram,e,a certa altura,entrou em ação um procedimento novo,que se manteve até ao fim. A senhora levantava-se da sua cadeira e vinha colocar-se por detrás dele,fazendo-lhe umas ligeiras massagens na testa por alguns momentos. Dizia ela que tais massagens,com marca da casa, faziam parte do seu método,uma parte essencial. Quer dizer,sem elas,os alunos não chegavam lá,onde ela queria que eles fossem. Uma coisa,porém,é certa,pode ele asseverar. Se ele chegou ou não onde ela pensava que ele podia ir não sabe dizer,mas para onde ele foi lá se conseguiu fazer entender e ele entendê-los.

ALGURES NESTE VALE - MORREU DE VELHO

Não haveria muitos burros como aquele. Pelo menos,lá na aldeia era ele quem levava a melhor.É que podia ser tomado como um macho,tal a sua estatura. No trabalho,não lhe ficaria atrás. Depois,era muito paciente,nada teimoso,sempre pronto para o que fosse preciso. A acrescentar a tudo isto,que já era muito,não se mostrava exigente,nem na comida,nem na cama. Qualquer coisa lhe servia.Não tinham conta os serviços que ele prestava. Pode dizer-se que era pau para toda a obra. E era também muito amigo de crianças. Nunca se indispôs com alguma,mesmo que,às vezes,abusassem,ao contrário do que acontecia com certos rapazolas. Ai daquele que o injuriasse,pois sabia dar a resposta adequada.Logo de manhazinha,abastecia a casa com água da melhor fonte. Depois,tinha pela frente a ordem do dia,quase tudo a ver com a atividade principal do amo,uma lavoura mixta de sequeiro e de regadio. Ele arava,ele gradava, ele fazia girar a nora,ele carregava com os produtos da horta e das courelas dos cereais e do arvoredo. Escusado será dizer que,nos intervalos,ainda lhe cabia o transporte de passageiros.Mas era de noite,pela fresquinha,após a ceifa,quando do carrear as colheitas para a eira,que ele tinha ensejo de pôr à prova os seus apurados dotes de orientação e de equilíbrio. Não precisava de guia,era ele que comandava,pelas estreitas veredas a subir e a descer. Os companheiros seguiam-no,confiados. Nunca perdia o trilho,nem nunca tropeçava.Todos invejavam a sorte do dono,que,por mais de uma vez,teve de dizer não a propostas tentadoras. Morreu de velho,deixando muitas saudades. Por muito tempo foi lembrado,sempre com referências elogiosas. Aquilo é que era um burro.

ALGURES NESTE VALE - REGRESSO

Chovera torrencialmente nos últimos dias. Os terrenos estavam numa papa e os caminhos alagados. A ocasião não era propícia,pois,para o regresso,mas havia um prazo a cumprir,que não devia ser ultrapassado,sob pena de se encontrar a porta fechada. Valeu a perícia do condutor e a colaboração de três ajudantes,ou melhor,de três boas vontades. O primeiro obstáculo surgiu logo à partida. O rio corria lá em baixo,apressado e turbulento,e o talude da margem parecia manteiga. A jangada já estava esperando. Duas tábuas oscilantes faziam negaças ao jipe. Mas este,só com o deslisar,que o mais estava interdito,deu com elas. Uma estrada de terra batida aguardava. Como se encontraria ela? Passara-se por lá há uns meses,quando da vinda,e aquilo era uma fábrica de poeira vermelha e um crivo de malha larga. Não se precisou de esperar muito para se saber a resposta. O que fazia ali jeito era um barco. Mas o jipe lá avançou,corajoso,a passo de boi,que mais não podia ser. A água,lamacenta,infiltrava-se por todos os buracos e a sua altura era,por vezes,de respeito. Houve,assim,necessidade de se fazerem desvios pelos morros,em risco de o jipe ir parar lá abaixo. Mas o declive,volta não volta,não permitia. Teve então de se recorrer ao expediente das pontes improvisadas com capim. Mas este era rei e não faltaram sapadores. A meta foi,finalmente,cortada. Assim terminava a primeira etapa de uma corrida. Outras se seguiriam,felizmente não tão trabalhosas e angustiantes.

ALGURES NESTE VALE - E O SILÊNCIO REGRESSOU

Não iria ser pera doce aquele aquele trabalho de cartografia de solos nas margens do rio Longa. Quando do começo, uma grande parte ainda estava inundada,mas haveria de secar,como sucedera noutros anos. Chegara a ocasião de um local que se tinha deixado para o fim,na esperança de que secasse completamente,o que não aconteceu. Ali,só com botas de borracha. Perto,ficara uma lagoa,de margens ensopadas. A água ,de cor acinzentada,ressumava a cada passo. Não fora possível abrir ali covas,pelo que a natureza do terreno só podia ser determinada por meio de sonda. Foi uma tarefa penosa,pois as mãos ficaram numa lástima. O capim crescera alto,mas pouco denso,permitindo serpentear sem necessidade de grandes esforços. A confiança era tanta,garantida por um prévio sinal da cruz,que nem um momento se pensou na surpresa que se podia ter no próximo afastamento de um tufo de caules. As observações faziam-se sem precalços e o silêncio do lugar não era perturbado por qualquer ruído alarmante. De súbito,ouvem-se repetidos sinais de aflição. Um pobre javali pisara,inadvertidamente,o espaço de um crocodilo e este não se fizera rogado. O desfecho foi rápido. E o silêncio regressou. Não houve uma palmeira,um embondeiro,nem sequer um pé de capim,por mais próximo,que viesse contar

ALGURES NESTE VALE - MUITO PIEGAS

Eram dois,a uma esquina. O mais alto,bem vestido,tinha um vozeirão de respeito. Pois fica tu sabendo que me há-de sair um dia a sorte grande. É o que te digo. Hei-de comprar sempre o mesmo número. É cá uma teima. O outro,de cabeça pendente,não abria boca. Estaria rezando a todos os santos para atenderem o amigo. Alguma coisa lhe havia de caber. O esperançado não mudava de disco,provavelmente,porque outra coisa de igual importância não lhe acudia. O outro,coitado,mantinha-se mudo.Outros dois,já com largos anos,enfarpelados com vestes de treino,como é moda agora,vinham, num despique animado,descendo a avenida. Estavam ambos com graves dúvidas sobre uma telenovela. Nem se lembravam bem dos títulos,nem dos nomes dos atores principais. Não havia meio de atinarem,contrariando-se mutuamente. A idade também já não ajudava.Depois,projectado numa parede,o cenário de todos os dias,na rua,no café,no emprego. Se não ganhar,será uma vergonha. Eu cá sou capaz de devolver o cartão. Aturar mais isto é que não. O melhor é gastar o meu rico dinheirinho no jogo,talvez na raspadinha.Logo a seguir,em canto recatado,duas comadres conversavam. Ai vizinha,não aguento mais este reumático. Já não sei o que hei-de fazer. Tenho corrido um ror de médicos e de endireitas,e nada. Eu estou na mesma e sou muito mais nova. Veja lá o que me espera ainda. O meu homem está farto de me ouvir gemer. Chega a dizer que não suporta mais. Ainda bem que a comadre é viúva,se não também ouvia das boas. Foi o que me valeu. Que ele,coitado,sofria mais do que eu,pelo menos era o que eu supunha,embora ele fosse muito piegas. Enfim,paz à sua alma,que o corpo,já se sabe,não encontrava cama melhor.

ALGURES NESTE VALE - TENDAS DE MARAVILHAS

Olhava para o ferrador com admiração. A coragem que devia ter para estar ali com uma das patas do cavalo sobre a sua coxa,a desbastar-lhe o casco e a fixar-lhe a ferradura. O animal,quando entrara,parecia não estar para ali virado,tais os gestos negativos que fizera. Mas a uma palavra sua,ao contacto da mão correndo-lhe o dorso,todo ele se aquietara. As vezes que o vira fazer o mesmo. Um tanto afastado,não fossem acontecer surpresas,observava embevecido a sua arte. A operação tinha uma fase mais empolgante,os ajustes. As ferraduras,presas por tenazes,iam à forja as vezes necessárias para as adaptar bem às diferentes patas. No cravar,residia a fase de maior expetativa,pois estava sempre com receio de que o pobre cavalo acusasse a dor.Quase ao lado,ficava outra tenda de maravilhas,o torneiro. Os objetos de madeira que o artista sabia fazer. O que mais o entusiasmava era o fabrico de peões. Daquilo percebia ele. Os de pinho não prestavam. Bons,só os de azinho.O oleiro,quase da mesma família,estava longe,mas de vez em quando visitava-o. Daquelas mãos e daqueles pés nasciam coisas de espantar. O barro submetia-se gostosamente,pois de pedaços informes iam surgindo,a pouco e pouco,artigos de muito préstimo,depois do toque da cozedura.Sempre que calhava,ia assistir ao feitiço operado numa padaria caseira. Estava interessado apenas no final,sobretudo na saída das merendeiras. Ainda quentes,regava-as com azeite e polvilhava-as co

ALGURES NESTE VALE - O PIOR É O RESTO

Saíam de casa a pé,às vezes de longe e de madrugada,para irem trabalhar. Quão diferente hoje é. Vão-nas buscar a casa e trazem-nas de volta. É como ter um transporte porta a porta. Pois elas,depois de terem calcorreado uma boa distância,tinham começado a monda do trigo,que bem precisado estava. O tempo não era dos melhores,mas esperavam que se aguentasse sem chuva. Mas não aconteceu assim. Se fosse uma daquelas miudinhas,de molha-tolos,vá que não vá. Continuariam lá,a cumprir as horas do ajustado. Para isso, tinham trazido aquela espessura de xales. Mas deu para cair em abundância. Chovia que Deus a mandava. Chegar-lhes-ia até aos ossos,mesmo que trouxessem uma montanha deles. Tinham já larga experiência disso,escusavam de tentar mais uma vez. Não tiveram outro remédio se não recolherem-se numa cabana. Uns jovens ,que por ali andavam,umas vezes de jipe e outras a pé,não viram também outra saída,refugiando-se onde elas já se encontravam. Está-se bem aqui,disse um deles. Está,está,o pior é o resto. Explique-se lá minha senhora. É que,com o dia assim,logo a esta hora,temos de voltar para casa com os bolsos vazios. E a vocês, vai acontecer o mesmo? Quem tinha de responder não atinou logo na resposta. Foram uns segundos de hesitação,de angústia mesmo. Mas não devia dizer a verdade. Tinha de mentir. Quem ousaria o contrário?

ALGURES NESTEVALE - MARCHAVA TUDO

Se a sede apertava,o senhor Joaquim corria logo para um poço. Olhe que vai adoecer,tenha cuidado. Não tem dúvida,vêem-se lá avencas e rãs. O outro resistia,desconfiado. Estranho era que nos "montes" bebia a água que lhe davam. Pensaria,certamente,que estava tratada. Quando não se descortinava um poço ou um "monte",o senhor Joaquim sabia desembaraçar-se,caso tivesse chovido de véspera. Ali por perto,havia de encontrar água nalgum rego. Então,ou se servia da concha da mão,ou se estendia ao comprido sobre o espigoado,para sorver. Se a sede não era muita,estava com cerimónias. Afastava,primeiro,alguns resíduos flutuantes. Sendo o apêlo grande,marchava tudo.

ALGURES NESTE VALE - UM LUGAR AO SOL

Eram aquelas umas bichas algo estranhas. Começavam a formar-se um pouco para lá da meia-noite,por vezes à chuva ou com um frio de rachar,mas também com as duas coisas juntas. Depois,com o correr das horas,chegavam a dar voltas aos quarteirões. E o mais curioso é que a cabeça delas apoiava-se na porta duma estação de correios. Não se tratava,pois,de bichas para o pão,nem para o que quer que fosse de comer,como acontecera às portas de quartéis,ou para uns cobres,às portas de casas ricas,em épocas remotas. Aquela gente estava ali,simplesmente,para conseguir lugar ao sol por preço de amigo,pois o dinheiro que eles tinham não dava para luxos. A seleção era feita pela hora,minuto, talvez segundo,do envio de um telegrama. Assim,por um minuto,talvez segundo,lá se perdia o sonhado poiso,ou mesmo poiso algum,o que era muio pior. Aquela gente,pois,via-se obrigada a largar o quente da cama muito antes do galo cantar e ir a voar para onde lhes podia sair a sorte grande. Os mais dorminhocos ou os menos lestos arricavam-se a só ter de chuchar no dedo. Consta que havia almas,almas penadas,que nem se deitavam,a pensar que o despertador não iria cumprir a sua obrigação. A que extremos se tem de chegar quando se quer fazer figura de rico,não passando de uns pobres pelintras.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - FARRAPOS DE ENERGIA

Se houvesse votação,era certo e sabido que seria ela a eleita,e a grande distância da segunda. É que ela era única,um caso muito,mas mesmo muito sério. Parecia uma santa que teria vindo lá não se sabe donde e tivesse pousado ali,como por acaso. E ainda bem,que o que não faltava por ali,e arredores,era gente carente,era gente que não tinha lá em casa um mimo,uma atenção,uma palavra doce,essas coisas que deram em rarear,se é que alguma vez abundaram. Sofria de asma,coitadinha,merecia melhor sorte,ou não,sabe-se lá,que ela com o coração que tinha,e com o que ela via,era capaz de estar disposta a ir-se desta vida de tristezas o mais depresa. As bichas que se faziam,pois só daquela menina é que gostavam. Ela atendia,ela falava,ela inquiria,um fenómeno. E ela sem poder,coitadinha,mas lá desencantava uns farrapos de energia para cumprir o que ela acharia ser a sua missão. Um dia,deixou de vir,depois,mais outro,e assim por diante. Uma grande,uma incontida tristeza derramou-se por ali. E agora? Onde estaria quem a pudese substituir? Acabaram por se conformar,que remédio. Chegara a hora dela,que tinha tardado. Mas não vivera em vão. Dera coisas de que outros careciam,coisas que iam escasseando,com cara de se tornarem como peças de museu.

ALGURES NESTE VALE - NADA BEM

Isto está cada vez pior. Dantes é que era bom. Teriam vivido lá nesse tempo e recordar-se-iam dele com muitas saudades. Tomara que ele voltasse. Ele lembrava-se bem de um antes e a esse antes não queria voltar. E esse antes era assim. Fora um tempo em que uma sardinha tinha de dar para três ou mais,os que lá houvesse. Em que as botas eram cardadas e reforçadas com biqueiras metálicas,para durarem uma eternidade. Em que se aplicavam remendos. Em que se viam fundilhos. Em que se viravam casacos e também casacas. Em que de velho se fazia novo. Em que havia empregadas domésticas a esmo,para aliviar famílias numerosas,a montante e a jusante. Em que se formavam bichas à porta de casas ricas,em dias certos,e aos portões dos quartéis,todos os dias. Em que se abriam bolsas de empregos em largos de aldeias e vilas. Em que se morria,vulgarmente,de tuberculose,de tifo,de sífilis. Em que se trabalhava de sol a sol,por dez réis. Em que vaganbundeavam ranchos para a colheita das uvas,para a apanha da azeitona,para a ceifa dos cereais,que se amontavam,como gado,em casas de malta. Em que,muitas vezes,se acabava a pedir esmola. Em que se rompiam solas ou as plantas dos pés a calcorrear caminhos crivados de buracos. Em que casas de banho e papel higiénico eram luxos. Em que corriam esgotos a céu aberto.Em que o burro e a carroça eram os transportes dominantes,sem falar nas pernas. Em que as costureirinhas se iam desta vida muito cedo. Em... O que muitos diriam,nesses atrasados tempos? Isto assim não vai nada bem. Dantes é que era bom.

ALGURES NESTE VALE - REGULAMENTO

Ele gostava de todas as sombras,menos de uma. São as exceções,uma fatalidade. E essa sombra,para ele,maldita,era a que alguém lhe fazia,quando acontecia atuarem no mesmo palco. Ficava gelado,o que muito o incomodava,o que não era de estranhar. Ninguém gosta de sombras assim. Pensou,então,não em livrar-se do causador de tal sombra,que isso seria demais,mas,simplesmente,da sombra má. Longe dele,consentia,mas ao pé,nem vê-lo. Como era homem de muitos recursos,sobretudo,de caco,não lhe foi muito difícil dar com uma airosa solução. Bastava alterar o regulamento,de maneira que o gerador da sombra que ele não suportava só pudesse figurar na assistência. E se de lá ainda tivesse artes para o sombrear,enfiava-se outra alteração no pobre regulamento,de modo a impedir-lhe a entrada. Já era embirrar demais com a sombra que o diabo do outro lhe fazia,pelo menos,era assim que se julgava. Mas tudo tem um fim. É que ele,como se referiu já,era homem de muitos recursos. E um homem assim tem de ser aproveitado para altos voos,o que aconteceu. Como o outro,coitado,era de voos cá por baixo,ficou o problema da sombra resolvido. Quem também veio a beneficiar foi o regulamento,que pôde,finalmente,dormir descansado.

ALGURES NESTE VALE - UMA SERENIDADE

A terra está num ponto dominante,"um alto morro isolado no meio de planícies e de vales". A vista é soberba. "A toda a volta até às faldas das serranias próximas desdobra-se a planície,aqui e além cortada de ondulações ligeiras". Por ali também há ecos de um passado rico. Não admira pois que a terra seja muito procurada,podendo, até, lá permanecer. Era o que estava acontecendo a um turista,vindo de muito longe. Todo o seu aspeto indicava que estava deliciado. De resto,o dia também colaborava,um lindo dia de sol,não muito quente. Parecia estar ele em sua casa. De alpergatas,de calções,de chapéu às três pancadas,preparava-se para ir bisbilhotar um marco desse passado rico. Mas alguém o interpelou. Sim,vinha ficar ali uns dias. Estava encantado. Pudera,o bulício que ia por lá,pela sua cidade distante. E ali era um sossego,uma paz,uma serenidade,quase o paraíso. E tão satisfeito estava,que não resistiu a anunciar que haveria de voltar,talvez mais do que uma vez.

ALGURES NESTE VALE - UMA GRANDE MULHER

Agora sabia bem que estivera nos Victoria Tower Gardens,ali à vista do Tamisa,mesmo no coração da grande urbe. Acontecera isso há muitos,muitos anos. Andara a meter o nariz por muitos cantos,a querer ver o mais que pudesse,que o tempo voava e o disponível era magro,e também porque podia ser aquela a última oportunidade de por ali passar,o que,de facto,veio a suceder. Parecia ele adivinhar. Sentara-se,a recobrar forças. Só depois de alguns minutos é que deu conta de que à sua volta apenas se viam senhoras de muita idade. Isso levou-o a pensar que estaria em local de algum significado. Não demorou muito a ser esclarecido. Uma das senhoras levantara-se e viera sentar-se a seu lado. Sabia ele onde se encontrava? Não,não sabia.Estava cansado e sentara-se no primeiro banco que vira. Está ali a ver aquela estátua? Pois é a estátua de uma grande mulher. A ela devemos,da sua luta,o direito das mulheres poderem votar. Estamos-lhe muito gratas por isso e sempre que podemos vimos aqui prestar-lhe homenagem.

ALGURES NESTE VALE - O ANFITRIÃO

Foi como que um tratamento de choque a curta passagem por aquela casa de hóspedes. De arrasar. Se lá permanecesse,era capaz de não ter saído de lá vivo. O dono dela,um cinquentão,de ar espetral,raramente punha a cabeça de fora. Quem geria o barco era a mulher e a cunhada,que estavam bem uma para a outra. Pareciam gémeas,pelo menos,nos comportamentos,um tanto ou quanto livres,para quem vinha da aldeia. Quanto à roupa,cada qual se arranjasse,que lavandarias,daquelas de uso individual,com introdução de moedinhas,não faltavam. Era uma em cada esquina. Não era aquilo uma Arca de Noé,mas quase. A variedade era de se ficar encantado,desde uma velhinha que não tinha para onde ir,até representantes disto e daquilo,passando por estudantes dos mais diversos cantos. As duas irmãs tinham um certo fraquinho por dois estudantes,com os quais conversavam um tanto familiarmente. Um deles era de tal qualidade,que um casal teve de levantar voo,antes do tempo previsto,sob pena de o marido perder a cabeça. O outro ameaçava quem não encobrisse a sua condição de casado e pai de filhos. Não se cansava de dizer mal da comida,mas não passava daqui. Era o seu jeito,e talvez lá do sítio de onde viera. Depois,onde é que ele iria arranjar uma arca assim? Ainda ficou esclarecido o porquê das pantufas,portas a dentro,do anfitrião. É que o gelo,lá fora, era tanto,que temia estatelar-se logo que pusesse o pezinho na rua. Passaria uma boa parte do tempo na cama. Elas que trabalhassem.

ALGURES NESTE VALE - PELA PINTA

Estava uma soalheira manhã londrina,como há muito não acontecia,e aquele sossegado jardim,com muitos bancos,convidava a nele repousar. Um homem circulava, pausadamente,como que a gozar dos rendimentos e daquela doce paz. Quando passava por um banco com gente,parava,fazendo uma vénia prolongada,respeitosa. Quase que levava a cabeça aos joelhos. Era um homem baixo,atarracado,de ar modesto,de tez morena. Já se podia ter sentado,mas não se atrevera. Não encontrara o banco que mais lhe convinha. Mas,finalmente,lá o descobriu. Sentou-se numa ponta. Na outra,estava alguém que ele julgou,pela pinta,ser seu vizinho,quer dizer,vindo de uma terra ao pé da sua. Não se enganara. E ali se puseram ,amistosamente, à conversa. Era de Gibraltar e tinha vindo a Londres tratar-se,beneficiando da generosidade do Serviço Nacional de Saúde. Sabe,é que eu tenho passaporte inglês. A insinuar que não era para ali um qualquer,como aquele com que estava conversando. Tinha escolhido,efetivamente,o banco certo. Nos outros,descansavam ingleses autênticos.

ALGURES NESTE VALE - DOIS ANOS INESQUECÍVEIS

Foram dois anos de cartografia de solos,a sondar-lhes as entranhas,até ao osso,ou seja,até à rocha,granítica,xistosa,arenítica,calcária,a maior parte das vezes. Não ficou canto por bisbilhotar,numa larga faixa,desde Alcácer do Sal até Elvas,com mais demoras em Évora,Viana do Alentejo,Reguengos de Monsaraz,Vila Viçosa e Monforte. Foram dois anos a varrer plainos,a subir montes e vales,revestidos de searas, ou à espera delas,a bater à porta de "montes",e não só,a passar arame farpado,que a fotografia aérea,base do trabalho,não registara. Foram dois anos de jipe,de caixa aberta,que o calor era muito,ou trancada,por causa das intempéries,jipe,que, lá de vez em quando,sem,ou com aviso prévio, se recusava a cumprir a sua obrigação,pelas mais diferentes mazelas. Foram dois anos de botas,e não só,cobertas de pó,ou de lama,ao sol,à chuva,que o jipe estava longe,valendo,nas emergências,a copa de um chaparro amigo,ou o aconchego de um casebre. Foram dois anos de ricas e variadas conversas, com donos,ou feitores, dos mais diversos teres,com jornaleiros e pastores. Foram dois anos de inesperados encontros com perdizes,e perdigotos,rolas,cizões, abibes,lebres e coelhos,pombos bravos,corvos,abetardas,carraças, touros. Foram dois anos inesquecíveis.