quinta-feira, 19 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - DE SOL A SOL

Era um espaço minúsculo,atravancado de fazendas e de fatos em diferentes estados de acabamento. Quase não cabia uma mosca. Mas dava jeito,pois o mestre era rápido a tirar as medidas e fazia apenas uma prova. Fornecia também lojas. Devia ter um exército a trabalhar para ele,no sossego das suas casas. E quase não descansava. Só aos domingos,e mesmo assim era muito bem capaz de os gastar com uns biscates. Estava no seu posto de sol a sol. Dizia ele que era por mor da velhice. Queria ter uma reforma que se visse. Mas se calhar não teve tempo para a gozar,pois era daqueles talhados para morrer no seu banco.Um moiro,dos das primeiras arrancadas. Às vezes,andava muito preocupado,com medo do fisco. Querem-nos levar ainda mais?Tinham prometido que não carregavam nos impostos. Já um homem não podia amealhar,desabafava. Talvez por isso,por mor de uma velhice descansada,era vê-lo a correr para o banco,a depositar o cheque recebido segundos antes.

ALGURES NESTE VALE - A ESTAÇÃO DO ENTRONCAMENTO

Era no verão,por altura dos Santos Populares. Seria bom que o povo tomasse contacto com a arte. E vai daí,fizeram uma exposição ao ar livre,num recinto convidativo,com árvores,com canteiros,num jardim. A um canto,arte abstracta,noutro canto,afastado,arte figurativa.E aconteceu,com frequência,o que era de esperar. Olhem para aquilo. Isto também eu pintava. Borradas,é o que tal coisa é. O meu filho,que anda na escola primária,podia ter aqui os seus desenhos. São muito melhores do que todos estes. Não têm jeito para fazer quadros que a gente entenda,depois,é o que se vê. Tanto tempo,tanta tinta,para sairem coisas destas. Olha a estação do Entroncamento. Era uma tela de grandes dimensões. Até parece que estamos lá. O homem sabe disto. E empurravam-se,todos queriam ficar bem ao pé,para não perderem nada. Sim senhor,isto é que arte. Pensam que a gente não consegue distinguir,mas estão muito enganados. Vejam lá como está tudo no seu lugar. O homem sabe do ofício. As plataformas,os comboios,os passageiros,os vendedores de pevides e de tremoços. E as cores?,cores de um rico dia de sol. Este comprava eu,se tivesse dinheiro. Ficava bem lá na sala. Agora, os outros,lá de trás,nem dados. Que diriam os parentes e os amigos se os vissem lá na sala? Que estávamos malucos de todo.

ALGURES NESTE VALE - NAACERA JÁ ASSIM

Há homens que lhes dá para colecionar damas. Uns,fazem-no pela calada da noite,outros,pela calada do dia,outros ainda,pela calada do dia e da noite. Um certo homem era desta terceira classe,todas as horas lhe serviam. Vivia numa terra,nem grande,nem pequena,uma terra assim-assim. Tinha todo o tempo para as suas meninas e uns tempos muito curtos para a sua esposa. Esta andava muito triste,o que não era para menos,mas não havia nada a fazer,ele nascera já assim. Era também um homem de caprichos. Coisa que lhe apetecesse,desde que não fosse a lua ou o sol,ou os seus muitos irmãos ou irmãs,tanto faz,era coisa possuída ou feita. E um dia,há sempre um dia,pensou em instalar a favorita mesmo em frente da legítima. Nessa mesma hora,ficou tudo arrumado. Já se podiam espreitar as duas. A esposa,coitada,à socapa,por detrás das cortinas,a outra,às claras,pavoneando-se. A ousadia,o capricho,ou lá o que se queira chamar,pode ter tido desenvolvimento,não se sabe. Era homem para isso e muito mais. O ideal seria que as duas casas comunicassem,ficando ele com a chave e a tranca. Ter-se-ia atrevido?

ALGURES NESTE VALE - DEVIAM SER MILHARES OU MILHÕES

Foram apenas quatro,ao todo,as que se dignaram mostrar,em média,uma por mês. Foi muito pouco,quase nada,mas não estiveram para mais. Deviam ser milhares,talvez milhões,as cobras daquele imenso e fresquinho vale. A primeira,coitada,já estava de partida para outro mundo,para o descanso eterno. Logo o tractor lhe havia de passar por cima. Torcia-se,ali naquele chão que ela tão bem conhecia,mas quase já sem alma. A segunda fora apanhada de surpresa. Já a gente não pode estar ao sol,teria pensado ela. Era o que estava fazendo no talude daquele apertado caminho de terra batida. Ainda levantou a cabeça, toda direita,olhem que eu estou aqui,mas só isso,que o jipe sumira-se,para não mais o ver. Uma aparição fugidia,não mais. A terceira estaria muito longe de pensar que iria ter aquele encontro. A noite fechara-se e ela lá se preparava para ir à sua vida. Já estaria atrasada para o jantar. E quem lhe havia de aparecer numa altura daquelas? Nem mais,nem menos,do que uma fila de gente a palmilhar aquele caminho tão seu conhecido. Eram muitos para ela. E assim,era melhor voltar para casa,no fresquinho capim da margem do rio. E foi o que fez,ela muito assustada,e eles ainda mais. A quarta não foi bem uma cobra,foi sim a sua imagem,pois dela só se viu o rasto,ali bem desenhado na tijoleira vermelha do alpendre da casa. O rasto terminava à porta. Devia ter entrado,pois havia apenas um. Estaria lá dentro, à espera. E naquele fim de tarde e naquela noite, não houve canto que ficasse por vasculhar, vezes sem conta,mas a cobra desaparecera,como por encanto.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

ALGURES NESTE VALE - A REBOQUE

O homem metia dó. Embora não fosse velho,longe disso,via-se bem que não era carruagem para aquela locomotiva. É que o seu cão não era um qualquer. Dava-lhe quase pelo peito e estaria na sua plena força. Aquela manhã de domingo estava de sol,mas um bocado fresca. Mais uma razão para o animalzinho querer sair de casa,pois lá dentro abafava-se. Além disso,tinha as suas necessidades. O dono que tivesse juízo. Teria andado na rambóia,deitara-se tarde,mas ele não queria saber de desgraças. Tinham de ir dar uma volta. Ordens são para se cumprirem. Levantara-se a custo,passara rapidamente pela casa de banho e enfarpelara-se ligeiramente,pois sabia muito bem o que o esperava. E assim,foi visto em calções,com camisa de manga curta,de trela na mão,a reboque do companheiro. O que ele tossia,o que ele tropeçava,o que ele cuspia. Algumas vezes esteve em risco de se estatelar. Era uma dor de alma. Mas o monstro é que não estava para compaixões. Quem quer um cão assim tem de estar à altura. Este dono não se importaria,porém,de fazer figuras tristes. Lá teria as suas compensações. Em primeiro lugar,dar-lhe-ia uma certa classe o exibir um tal adorno. Depois,livrá-lo-ia de assaltos,para os quais não estaria preparado. Não lhe custaria,pois,fazer alguns sacrifícios,como o de sair cedo da cama em manhãs de domingo,fizesse sol ou não.

ALGURES NESTE VALE - UM ETERNO RECOMEÇO

Há quem goste de começos,talvez para quebrar a monotonia da vida,quando instalada,em marcha de rotina. Lá terão as suas razões,de que eles são parte. E uma delas está bem á vista,e é a de verem a vida como um eterno recomeço. Pois não se morre,de algum modo,todos os dias,no sono? E a vida freme,a cada momento,em múltiplas transformações,como que renovando-se,num ser qualquer. Depois,ou ao mesmo tempo,a natureza envolvente está ali sempre,bem próximo,a dar mostras de que quer continuar. E é o Sol que não se esquece da sua função,nascendo todos os dias,num teimoso recomeçar. E é a Primavera,portadora de promessas,que, persistentemente,as vem trazer. E é ver as plantas,erva,arbusto,árvore,numa perpétua renovação,mesmo sem os cuidados do homem. Elas lá nascem,lá crescem,lá se desenvolvem,lá passam o testemunho,tudo muito naturalmente. A vida nelas é um contínuo mudar,mudar de cara. E mudar de cara é o que se passa com muitos,com todos,à semelhança do poeta,sem se deixar de ser,num eterno recomeço,a partir de si,de cada um. Não é de estranhar,pois,que haja quem diga que goste de começos,assumindo,afinal,a realidade de todos,que,a cada momento,de algum modo,vão renascendo.

ALGURES NESTE VALE - ENCANTADO

O homem acordara bem disposto. Estava um dia de sol. Esqueceu dívidas suas e de outros,esqueceu a tristeza que vai por esse mundo e apeteceu-lhe vadiar. E lá foi,não para muito longe,que as pernas já lhe iam pesando. De resto,ele estava convencido de que,tirando umas certas pequenas diferenças,esse mundo é todo igual. Tomou um transporte público,e ,quase não tinha aquecido o lugar,apanhou com um muito obrigado humilde,só por ter facilitado a saída do parceiro do lado. Começava bem a digressão. Lá onde desembarcou,eram só manifestações de lazer,a imitá-lo,ou ele a imitá-los,tanto faz. Uns andavam,para lá e para cá,tal como ele,uns saltavam,uns corriam,uns pedalavam,uns pescavam,uns torravam. Também voavam gaivotas e mourejavam duas ou três famílias de gatos. A estes,comida não faltava,que alguém deles cuidava,que bem se via. Mas um,naquela altura,estaria para outra iguaria virado,pois de teimosa perseguição uma gaivota se livrou. Tantos eram os que lá se entretinham,que na bonita igreja apenas se encontrava uma alma. Mas esta enchia-a toda.Era voz que encantaria o próprio céu. Bem precisaria este de tal encantamento. É que lá fora,um estranho grupo actuava. Estavam ali por causa de um morto,mas eles bem vivos se mostravam,bem vivos e bem dispostos. Ele também viera de lá encantado. E mais encantado ficou,quando, a uma inquirição sua , uma senhora pronta e alegremente o informou. Parecia estar à espera de que alguém dela precisasse. Correra-lhe bem,pois,a digressão desse dia. Era para,mais uma vez,agradecer a Quem dos dias se encarrega.