quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

COMBÓIO À PORTA

Era uma terra nem pequena,nem grande,uma terra asim assim,que ficava lá para o cabo do mundo,mas com comboio à porta. Nessa terra,havia três pessoas importantes,o comerciante João,o médico e o engenheiro. O senhor João ia,uma vez por outra, à capital,para se actualizar. Aquilo era um contar de novidades de estarrecer,no café central,à noite,depois dos trabalhos. Certa vez,o senhor João contou também uma aventura. Oh senhor João,se a sua mulher calha a saber,coitada dela? Não tem dúvida. Ela sabe muito bem que é só dela que eu gosto,ela está sempre em primeiro lugar. O médico não tinha mãos a medir,mas não na sua profissão. Como a gente lá da terra raramente estava doente e ele não era de se encostar às paredes,arranjara outros interesses. Ele era agente disto e daquilo, era agricultor,ele era,acima de tudo,mecânico de viaturas. A terra era ponto obrigatório de passagem de tractores e de camionetas,que,frequentemente,tinham as suas mazelas,a necessitar de tratamento. E o médico intervinha,a dar uma ajudinha. Chegava a estender-se no chão,a examinar eixos e cambotas,ficando numa lástima. O engenheiro era o responsável de uma grande obra. Por tal motivo e por estar muito interessado em encarecer o seu complexo trabalho,era ele que pontificava. A grande obra iria custar metade do que estava previsto. É que ele sabia poupar. Hoje meti nos cofres da empresa um dinheirão,era a sua expressão favorita. Quem eram os ouvintes para daquilo duvidar? Mas parecia haver ali economias a mais,alguém teria feito mal as contas.

AR DA FARTURA

Vinha de lá consulado por uns tempos. Possuíra aquilo por um dia ou dois,as searas a perder de vista,as muitas cabeças de gado,os olivais bem tratados. Interessara-se menos pelo pomar,onde as laranjas permaneciam nas árvores tempo demasiado,a ponto de ficarem sem sumo.Jantava-se ao som de orquestra afinada, de cigarras e de grilos, e respirava-se,sobretudo,de noite,o ar da fartura. O cozinheiro,que servia também à mesa,de luzidia calva ,parecia um ganhão acabado de vir do trabalho,todo encardido de suor e de poeira. O avental dava mostras de não ter substituto. Nele apoiava um grande pão,que cortava em fatias grossas,com uma faca de matar porcos. Dava-lhe o sono depois daquela estafadeira e a loiça ficava por lavar.De madrugada,acordava ao som de ruidosa azáfama na cozinha. Além de água sempre a correr,os pratos e os talheres davam em imitar o cozinheiro ,que gostava de conversar com ele mesmo. O casarão parecia uma caixa de ressonância. As cigarras e os grilos mais próximos ,de tão assustados,emudeciam.Levantava-se cedo,para alongar o período de carregamento da bateria. Não se podia desperdiçar,de facto, aquelas raras ocasiões,que valiam ouro. Faria como alguns,ainda que em muito diferente escala,que iam temporadas para longe,de modo a equilibrarem as finanças.

FINA CEIA

À vista de todos,banqueteou-se. Era hora da ceia e ele devia estar com pressa. Nem se lembrou de oferecer,mas estava desculpado. Ele mesmo se encarregou de todas as operações. Já vinha preparado. De um saco,já muito gasto,retirou tudo quanto era indispensável,menos o vinho,mas esse,a seu tempo,apareceria,pois ali havia muito.E o que era tudo? Uma cebola grande,daquelas próprias para um regimento,azeite,vinagre,sal e pão. Com um canivete,cortou a cebola em rodelas muito finas,que foram caindo num prato de esmalte,já também muito usado. Regou-as prodigamente com azeite e vinagre,que,mesmo assim,foram incapazes de dissolver as carradas de sal,ao seu gosto. O molho devia estar uma delícia,pois grande parte dele marchou logo,ensopando pedaços de pão. Finalmente,a montanha de rodelas lá seguiu o seu destino,mas com vagares. Foi um prazer vê-lo comer. Prazer maior deve ele ter tido. E assim,ficou sobejamente demonstrado como tão simples é,e quase de graça,o ter uma fina ceia.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

OS MAUS DA FITA

Olha o diabo dos corvos. Para o que lhes havia de dar. Viram-no ali sozinho e vá de nele se vingarem,atirando-se,vertiginosamente,em voo picado. É certo que não morria de amores por eles,sabe-se lá porquê,mas tinham errado o alvo. Não fora ele que dependurara os seus muitos irmãos,sem cabeça,ali expostos nos ramos das azinheiras. As cabeças serviam como prova,para um prémio. Diziam que davam conta das crias,de coelhos,de perdizes e demais familia. Esta disposição não seria só ali. Era capaz de estar muito generalizada. Uns bons anos passados,tivera ocasião de o testemunhar,em terra longínqua. Mostravam lá,com grande pormenor,os estragos que eles causavam. Eram os maus da fita.

MAUS TRILHOS

Chovera a cântaros naquele mês de Novembro e a ribeira ia caudalosa. A noite aproximava-se e era altura de regressar a casa. O jipe já pensara nisso,pois não se estava sentindo nada bem. É que precisava de cuidados que só lá na vila encontraria. Ainda se fez ao caminho,mas chegara ao limite das suas fracas forças. Acudam-me. E agora? Ao longe,via-se um "monte". Talvez lá houvesse remédio. Vieram logo com um tractor,e lá o trataram como puderam. Ficou a andar, mas muito mal e incapaz de ver na escuridão,que,entretanto,se fizera. E agora? Haviam de chegar a casa,que devagar se vai ao longe. O jipe,muito chegado ao guia,por vezes,a tocarem-se,lá avançava,penosamente,mas muito amedrontado,pois o fragor da corrente,mesmo ali ao lado,era medonho. Valeu o caminho ter sido aberto em granito esbranquiçado. O jipe esteve um dia a recompor-se,mas disseram que não iria durar muito. Mas aquela era gente sem coração e não descansaram enquanto o não puseram a calcorrear os maus trilhos do costume.

ALTOS RISCOS

As uvas estavam prestes a serem colhidas,pelo que um estranho apanhado entre as videiras não seria bem visto. Mais ainda,se trouxesse sacos de plástico,embora transparentes,arriscava-se a que o maltratassem. Não chegaram a tanto,mas do epíteto de ladrão não se livrou,uma e mais vezes. Aconteceu isso,nesta tão arriscada altura,porque um jovem estava cheio de pressa para fazer um certo trabalho. Para tal,tinha de colher folhas e terra numa vasta zona. Se acaso deixasse passar aquela oportunidade,teria de esperar pelo ano seguinte. Seria como estar a marcar passo por longos meses,e isso é que não. Necessidade,a quanto obrigas. Das folhas,obteve fotografias que mostravam,claramente,sintomas de uma doença. Tinham,pois,para o jovem,um grande valor,sobretudo porque a elas estavam associados altos riscos. Tinham-lhe custado,pode dizer-se,suor e quase sangue. Cometeria uma injustiça quem dele duvidasse. Pois foi o que sucedeu. Um ilustre senhor,ao vê-las,não se conteve. De que livro as surripiou?